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Carnavalize

Por Felipe Tinoco



“Quando a gente chega do carnaval, o porteiro do meu prédio já pergunta: e aí, o que tem no próximo ano?”, disse Rodrigo, rindo. “Eu ainda nem escovei os dentes, mal cheguei dos desfiles”, completou Priscilla. Juntos há mais de vinte anos, o casal de coreógrafos mais aclamado pelo público e pelos julgadores recebeu o Carnavalize para uma entrevista no barracão da Estação Primeira de Mangueira.

Na sala, além dos dois, estavam duas demonstrações do sucesso da união. A primeira, o filho Davi, de cinco meses, que no meio da entrevista foi trocado de roupa pelo pai quase tão rapidamente quanto as meninas do popular “Segredo” (Unidos da Tijuca, 2010). A segunda são as falas de uma dessas meninas, carinhosamente chamada de Gabi, hoje braço-direito dos coreógrafos. A produtora é só elogios: “eles são incríveis, trabalham muito, têm um olhar muito especial. Respeitam muito todos os integrantes, sabem a medida certa entre exigir e abraçar. São poucos diretores que têm uma qualidade tão grande quanto eles dois”.

Essas espontaneidade e genuinidade que caracterizam o vínculo profissional e pessoal de Priscilla Mota e Rodrigo Negri dão o tom do nosso bate-papo. Confira a última entrevista da temporada da nossa série de Processos da Criação!


Carnavalize: Vocês conseguiram 8 anos consecutivos fechar o quesito, algo que é raro em qualquer setor das escolas de samba. Ao que vocês atribuem esse sucesso com o júri?

Priscilla: Bom, aqui no barracão já se dá para ter uma noção disso. É mão na massa. Não tem essa de achar que é só fazer sucesso, deu tudo certo e relaxar com o sucesso. A receita é esquecê-lo e partir do zero a cada ano. Estar na Mangueira esse ano tem a ver com isso, com a gente se reinventar e sair da zona de conforto, estar dentro de um projeto desafiador, dar uma sacudida na nossa própria carreira.
Rodrigo: A mão na massa é mesmo muito importante. A gente cuida de todo o detalhe da comissão de frente, desde figurino até tripé - esse ano inclusive há uma cenógrafa acompanhando a gente. Há diversos detalhes muito pessoais, que nós, ao lado do dia a dia com nossos bailarinos, sabemos o que é melhor para cada momento.
P: E a comissão de frente é uma obra aberta. A gente finaliza o projeto, deixa tudo pronto, mas todo dia a gente ensaia e todo dia a gente quer aprimorar alguma coisa. A coreografia pronta não nos libera para ir no cinema, a gente fica pensando em casa o que se pode melhorar. Agora mesmo fizemos alguns ajustes no carro, sentamos com o Leandro para rever alguma coisa do figurino. Até a sirene tocar e o portão azul abrir, a gente está arrumando coisa, consertando, aprimorando. Nós somos artistas, e na hora que cristalizarmos na nossa própria criação, tem alguma coisa errada.
R: Nós ensaiamos demais com o grupo também. Até brincam com eles (os bailarinos): “ah, vocês trabalham com a Priscilla e o Rodrigo? Pelo amor de Deus, eles ensaiam demais!”. E é essa a receita do sucesso, trabalho, não tem como contar só com a sorte. A gente trabalha em cima dos imprevistos que podem acontecer na hora, e antecipa o que pode dar errado, tentando ajustar essas coisas.


Carnavalize: Como vocês começaram a trabalhar no carnaval? O trabalho que realizam com as escolas de samba é muito diferente do trabalho que vocês fazem fora da Sapucaí?

P: Então, a gente sempre amou carnaval.
R: A gente assistia os desfiles nas arquibancadas, comprava fantasia de ala, desfilava.
P: Alguns amigos coreógrafos começaram a nos chamar para desfilar em carros com coreografia, pintava convite para desfilar em queijo... Chegamos a desfilar na Lins Imperial, no Grupo B. Quando começamos a fazer comissão de frente, paramos de curtir carnaval. Em 2005, um coreógrafo que era do Municipal nos chamou para trabalhar na comissão de frente da Tradição. Ele assumiu o posto faltando um mês para o carnaval e precisava de bailarinos profissionais para conseguir realizar o trabalho tão rapidamente. O Rodrigo acabou indo de assistente e eu de bailarina. No ano seguinte, o coreógrafo foi chamado para a Tijuca e me convidou para ser assistente dele, enquanto o Rodrigo foi componente na comissão do Salgueiro, no carnaval do Microcosmos, pois ele queria ter a experiência de desfilar. Então, depois do carnaval de 2007, o Lobato (coreógrafo) saiu para a Viradouro. A Lucinha Nobre, que era porta-bandeira da escola e nossa amiga, acabou sugerindo que o Rodrigo viesse para a Tijuca e nós ficássemos responsáveis pela comissão de 2008, nosso primeiro ano.
R: No teatro tem ensaio geral, que conta com toda equipe e estrutura. Mas essa disciplina do ensaio do teatro é muito presente no nosso trabalho com o carnaval. Se estiver chovendo, a gente dá um jeito, espera a chuva parar. Às vezes não tem ninguém na Cidade do Samba, só a gente (risos). Aí a gente cobre o carro, mas pode acontecer isso tudo no dia, lá na avenida, então a gente treina para isso.
P: Sobre a relação entre os diferentes trabalhos, o carnaval nos ajuda a ser “safo”. Se acontece um problema, a gente não sofre o problema, a gente resolve. Carnaval é puro imprevisto, e a gente precisa se programar para que tudo dê certo. Por mais que nós ensaiemos muito, o Sambódromo tem desnível, é aberto à chuva, tudo pode acontecer. A gente deixa o carro no sábado de carnaval lindo, maravilhoso, mas não sabe o que pode acontecer com o carro no trajeto dele daqui (Cidade do Samba) até a Presidente Vargas. A gente tem que chegar junto com ele e ver se está tudo certo. Em teatro não se tem esses perrengues. Já do intercâmbio do ballet para o carnaval, a disciplina e o ensaio é o que trazemos.

"A mão na massa é mesmo muito importante. A gente cuida de todo o detalhe da comissão de frente, desde figurino até tripé"

Carnavalize: O carnaval tem um processo de escolha de enredo, lançamento de sinopse, definição do samba... Em que momento vocês concebem a coreografia e como é esse processo? Costuma ser diferente de ano a ano?

R: Tem diferença de ano a ano, nunca é igual. Não há uma regra, depende muito do enredo e da ideia que ele proporciona para gente de ideia.
P: O samba também nos inspira muito. Há sambas que pensamos “caramba, de onde vamos tirar (a coreografia)?”. Esse ano está sendo ótimo, a gente queria que o samba fosse maior, para a gente ficar mais tempo na cabine, porque é muito bonito, o enredo é tão incrível. Para esse carnaval, nós sentamos com o Leandro, que explicou o enredo todo e já saímos daqui com várias caraminholas na cabeça. Demora um pouquinho para a gente entender para aonde vai; sobre o que a comissão falará, qual caminho tomaremos, se falaremos de algum setor ou faremos uma síntese do enredo... A gente já pensa no conceito, no que vamos fazer, com essas informações. Com a definição do samba, a gente cria a coreografia propriamente, o movimento, como a gente organiza o que a gente pensou. Mas dentro de todo projeto, a coreografia é 10%. Para a gente é a parte mais fácil por conta da nossa formação como bailarinos. Tudo que envolve a coreografia, o entra e sai do carro, a parte técnica, a logística, a cenografia, o figurino que às vezes é um efeito e você precisa ficar em cima para dar tudo certo... A produção sempre é mais trabalhosa que a coreografia.
R: A coreografia serve para costurar o nosso pensamento, a nossa ideia. Há coreógrafos que gostam de coreografias que visualmente parecem muito difíceis. Os nossos bailarinos se esforçam muito, é difícil, mas a coreografia tem mais essa função de costurar nosso conceito. E o grupo é muito rápido, a gente já trabalha junto há mais de 10 anos, e eles dão sugestões, solucionam algumas coisas.


Carnavalize: E como funciona o processo de concepção em dupla, com duas cabeças pensantes?

Gabi: Existe uma palavra: cumplicidade. Onde um acaba, o outro começa. Onde um termina, o outro chega. Eles são um elo. É cabeça e coração e coração e cabeça, é impressionante.
R: Às vezes um preciso estourar e é preciso respeitar isso. O respeito é muito importante.
P: Tecnicamente, se eu pudesse separar, ele cria e eu organizo. Tirando toda a parte do processo, da colaboração de todo mundo que chega e faz comentários para somar. A gente foi ensaiar no Sambódromo anteontem e eu fiquei olhando para os empurradores que foram levar o carro, que nunca assistiram o ensaio, para ver a reação deles. Também achei legal que uma funcionária do Sambódromo me ligou para elogiar o ensaio. Tudo que vem de fora agrega. Ontem eu mostrei o vídeo (da comissão) para a minha mãe pela primeira vez e ela perguntou “por que eles estão de costas?”. A gente viu de novo e resolveu mudar, colocar de frente (esses componentes). Tudo ajuda.
R: Essa coisa que a Pri falou que eu gosto de criar é relacionado com movimentação, coreografia, que fica mais comigo. E ela organiza, porque eu tenho preguiça dessa coisa de organizar, de “fulano de tal, fila aqui”, “desenho para lá”, ensaiar “braço”. Isso fica mais com a Pri, uma coisa meio tia (risos).


Carnavalize: Vocês conseguem ensaiar na Sapucaí com o carro?

P: Muito raramente a gente leva o carro, mas esse ano a gente está levando bastante. O Leandro é um cara que tem uma cabeça muito ‘pra frente’ em relação a isso e a gente já levou o carro para ensaiar quatro vezes. É uma demanda, precisa de gente para levar, tem a coisa do trânsito.... É um esforço. Aqui na Mangueira a galera quer muito ganhar, então há esse comprometimento forte.


Carnavalize: Há nitidamente um clima muito bom entre vocês e todo o elenco e há diversos rostos que se repetem todo ano nas comissões de vocês. Como funciona esse trabalho em conjunto com eles?

P: Harmonia é fundamental. A gente não consegue trabalhar num ambiente ruim. Alguns bailarinos estão conosco há muito tempo, e quando precisamos de mais gente, pedimos indicações dos próprios bailarinos. Eu nunca peço bailarino bom, peço bailarino gente boa. Ensaiando, a gente vai fazer a pessoa executar bem a coreografia.
R: A nossa cartela de bailarino é muito grande, a gente já trabalhou com diversas pessoas. Só no Segredo (Unidos da Tijuca, 2010), foram mais de trinta bailarinos. O legal do nosso grupo também é que muita gente para e continua conosco de outras formas. A própria Gabi, a Amanda que nos apoiará no desfile e já foi componente durante quatro, cinco anos... Há vários eventos que o pessoal participa com a gente também, diversas outras coisas.
P: Na Dance Solutions (empresa dirigida pelo casal), a gente faz muitos eventos artísticos para o meio corporativo. Essa galera que trabalha com a gente acaba fazendo isso também, o próprio show da Ivete... O carnaval é uma vitrine, e vai fidelizando, porque gostam do nosso trabalho e da nossa experiência com produção.
R: Nós fizemos trabalhos para Bradesco, Coca-Cola, Renault, apresentações para Michelle Obama, para o Lula, participamos de diversos programas de TV, na Xuxa, na Ana Maria Braga, no Fantástico. Vários eventos esportivos também, como Liga Mundial de Judô, Liga Mundial de Vôlei, Copa, Olimpíadas... Além de uma experiência muito legal em Angola, no concurso de Miss do país, coreografando o Segredo com pessoas de lá que não eram bailarinas.


Carnavalize: Vocês são conhecidos por trazerem elementos visuais de forte impacto para o desfile desde a troca de roupas, até as cabeças caindo, a mola do Gonzagão. Em 2016, a própria Ivete fazia esse papel de impacto e por si só já causava explosão. Primeiro vocês pensam na ideia da comissão e depois nesse elemento, ou ele é pensado desde o início?

P: Depende. Ultimamente tem sido depois, mas na época da Tijuca foi predominantemente antes, após a cobrança do segredo, quando ficamos até estigmatizados por isso. Não é que não queremos ser identificados como casal segredo, casal que faz mágica, mas há projetos e projetos, enredos e enredos. Em 2012 era simples, só as molas, e foi um dos anos que eu mais me diverti. Deu muito certo pelo conjunto da obra.  A gente não pensa mais no efeito antes da ideia.
R: É, às vezes cabe. A gente pode estar vendo um espetáculo e pensar como aquilo se encaixaria num desfile, como foi com a bola (Grande Rio, 2016), quando assistimos o Força Bruta. Encontramos por coincidência os responsáveis, que eram argentinos, em um evento da Globo que a gente estava fazendo e se preparando no camarim ao lado do deles. Quando fomos nos apresentar, eles já nos conheciam, conheciam nossos trabalhos, e foi uma parceria bem legal.

"Sobre a Mangueira, a gente percebeu aqui como a equipe está em prol do trabalho. Se a gente precisa arrumar um ferro que soltou, na hora resolverão. Não tem aquilo de “segura um pouquinho que depois eu resolvo” e não resolve."

Carnavalize: Na avenida, a Priscilla costuma comandar os bailarinos e o Rodrigo, a ficar no radinho. Quem é responsável pelo o quê na passada pela Sapucaí?

R: A Pri vem com a função de puxar o andamento do desfile, comandar e fazendo os sinais referentes às coreografias, de parada ou a de júri. E eu venho acompanhando o tripé, que normalmente tem alguma manobra, precisa parar para a entrada dos bailarinos... Eu venho nesse backstage, que é a parte mais tensa. Eu não posso me desgrudar, preciso estar muito concentrado, para observar as marcações das caixas da avenida. Dificilmente eu consigo relaxar. A Pri vem no comando e disfarçando no sorriso (risos).
P: No ano do Ayrton Senna (Unidos da Tijuca, 2014), o carro de corrida quebrou. Eu olhava para ele (Rodrigo) e ele estava tenso, e eu vinha com sorriso coreografado.
R: Normalmente eu venho em contato com a Gabi, e ela vem dentro do tripé, organizando tudo e resolvendo os problemas que possam surgir. Nesse carnaval de 2014, todo processo foi complicado porque o carro de Fórmula 1 deu um monte de problema nos ensaios. No dia do desfile, depois que a gente resolveu todos os problemas, o pneu furou. Quando vimos, começamos a correr atrás de um outro pneu. O engenheiro do carro conhecia uma borracharia, a gente conseguiu trocar lá e pronto, tudo resolvido. No primeiro julgador, o carro funcionou. Mas o piloto do carro sugeriu desligá-lo entre cada cabine para não ter problema com o fato dele esquentar dentro do tripé. Aí eu falei pra Gabi: “Gabi, prepara jurado, liga o carro”, para a gente se apresentar para outra cabine. Ela foi e me falou “o botão entrou, o carro não ligou”.
P: A gente tirou a nota máxima, o júri amou, mas sabe quanto o botão custava? Cinco reais.
R: Eu falei “dá um jeito, abre o carro”. Tiraram a carenagem com as mãos para tentar fazer uma ligação direta. No terceiro jurado, perguntei pra Gabi e ela disse que não ligou. Eu sei que terminou o desfile, quando passou no quarto julgador, a Gabi falou “ligou!” (risos). Ali já não adiantava mais. A gente saiu arrasado daquele desfile, mas a comissão segurou na raça, com a execução e a coreografia perfeitas.
P: Quando terminou aquele desfile, eu falei “eu não quero mais fazer carnaval, chega, para mim deu”.


Carnavalize: Isso influenciou a saída de vocês da Tijuca?

P: A gente não saiu porque o carro deu problema, foi uma série de questões. Quando há um desgaste artístico, não tem como você se segurar. É natural, isso acontece com o tempo. Por isso acho que para o artista é muito importante você estar sempre renovando o ciclo e fazendo aquilo que acredita, sem sofrer. Quando está sofrendo, tem que parar. Para o Rodrigo era mais tranquilo, mas eu sofria.
R: Lá a gente sofria pela pressão e achamos melhor mudar os ares e fomos para a Grande Rio.

"Para além de saber o que dá certo, a gente sabe muito mais o que dá errado. Por exemplo, não acompanhar um projeto, deixar o barracão tocar e não estar perto... Não dá certo."

Carnavalize: Há um intercâmbio entre os coreógrafos de comissão de frente? Como funciona essa relação entre vocês?

P: A gente troca bola meio no muro das lamentações. A gente não pede ajuda para não “abrir” (contar os detalhes da comissão), mas a gente tem vários amigos que fazem comissão, minha irmã (Claudia Mota) faz, a gente chora pitanga junto... Somos muito amigos do Jorge (Teixeira) e do Saulo (Finelon) e todo ano quando acaba a gente fala “chega, último ano”. Dois meses depois já estamos nos perguntando “e aí, já começou? Como está?” (risos).


Carnavalize: As comissões geralmente dialogam com o restante na escola e isso envolve uma conversa com os outros profissionais. Vocês trabalharam com o Luiz Carlos Bruno, com o Paulo Barros, o Fabinho, o casal Lage e agora com o Leandro. Existe uma diferença muito grande em trabalhar com profissionais tão distintos? E como fazer para que exista ao mesmo tempo autonomia no trabalho de vocês e que a comissão não seja só um apêndice da escola, sem dialogar com seu restante?

P: Eu acho que é importante viver o dia a dia das escolas. É que nem água, você vai se moldando àquela estrutura. Ao mesmo tempo a gente tem um estilo de trabalhar - não só de resultado, mas também de percurso até o dia do desfile - muito particular e que a gente respeita. Há coisas que a gente se molda à escola e há coisas que a escola se molda no nosso ritmo. Para além de saber o que dá certo, a gente sabe muito mais o que dá errado. Por exemplo, não acompanhar um projeto, deixar o barracão tocar e não estar perto... Não dá certo. A gente cobra muito para conseguir passar curtindo na avenida, em um trabalho que a gente saiba que não tem risco de dar errado. A gente quer muito aprender com todos eles - e por isso a gente está aqui para trabalhar com o Leandro -, a gente aprendeu muito com todo eles e, depois de 12 anos de carreira, a gente aprendeu o que dá errado e a dizer alguns “não” a determinadas coisas.
R: A gente gosta de acompanhar o processo, ver os desenhos do carnaval, não só os da comissão de frente. Isso serve como referência para gente, ajuda a definir a nossa ideia. Aí a gente pensa se seguiremos algum setor da escola, se faremos uma síntese do enredo. A gente adora conversar com os carnavalescos até fechar o nosso pensamento.

Além da harmonia, a sintonia do casal é o grande trunfo de seus trabalhos. 

Carnavalize: E como está sendo trabalhar na Mangueira e o que motivou a vocês a virem para cá?

P: Primeiro que quando a gente se desligou da Grande Rio eu já estava grávida de um mês e eu pensei em não fazer carnaval. Mas aí começou, todo mundo ligando, vários presidentes e diretores ligando. O único carnavalesco, o único artista que ligou para gente, foi o Leandro. Para nós, muito mais do que nosso nome, salário e passe, a gente quer ser feliz.
R: É importante esse bate-bola entre os artistas, enriquece dos dois lados. A gente já ouviu tanto que nós somos caríssimos, gente perguntando como a Mangueira está conseguindo pagar... É engraçado (risos).
P: Normalmente quando alguém chama para contratar, liga, no pós-carnaval rola aquela dança de cadeiras, perguntam quanto a gente ganha, quanto custo um projeto nosso e o que se precisa fazer para estarmos em uma escola. E isso foi a última coisa que falamos com o Leandro, que estava interessado em entender como a gente trabalhava. Primeiro foi um casamento artístico e depois que rolou toda negociação.
R: Sobre a Mangueira, a gente percebeu aqui como a equipe está em prol do trabalho. Se a gente precisa arrumar um ferro que soltou, na hora resolverão. Não tem aquilo de “segura um pouquinho que depois eu resolvo” e não resolve. Ligam dizendo quando acabam e ainda perguntam se precisa de mais alguma coisa. A gente sentiu essa diferença aqui na Mangueira, para que tudo dê certo. Cada uma tem suas particularidades, mas isso foi uma coisa que sentimos aqui.
P: A gente tem muita gratidão por onde a gente passou porque as escolas que nós trabalhamos nos fizeram ser quem somos hoje, de aprendizado, de tudo, de tudo. A gente aprendeu com cada pessoa que a gente trabalhou, tanto na Tijuca quanto na Grande Rio. É a soma, a gente vai somando. E chegou um momento que a gente viu o carnaval do Leandro e queria trabalhar com ele, para trocar, aprender, para viver a experiência e a emoção da Mangueira. A gente não tinha vivido essa experiência de estar em uma escola que tivesse uma nação, que fosse uma representatividade cultural no âmbito nacional. Com todo respeito pelas escolas que a gente passou, é um diferencial pela comoção nacional que é a torcida da Mangueira e a sua representatividade na nossa cultura. Então eu acho que a gente está construindo nossa história com experiências muito boas.

"É muito bom a gente ter que voltar para nossa criatividade, sim, e isso é uma coisa que a Mangueira está ajudando bastante a gente. É um momento complicado do país, não dá para gente enlouquecer e ser artista mimado."

Carnavalize: Vocês trabalharam com alguns enredos mais abstratos (como coleções, espaço, segredo, medo no cinema e baralho) algumas homenagens (como Chacrinha, Senna e Ivete), os famosos CEPs (como Alemanha e Santos) e agora estão diante de, sem dúvidas, o tema mais político e denso dos carnavais que já fizeram. Como foi conceber esse projeto?

P: Foi difícil. Não foi fácil até achar o que a gente iria fazer. A gente não tem um desfile para contar uma história, a gente tem alguns minutinhos. É pouco para pensar a mensagem inteira do desfile da Mangueira, mas acho que a gente foi muito feliz na nossa escolha porque... Não posso falar! (risos). A gente foi por um caminho muito legal. Como artista, esse enredo nos tirou da zona de conforto completamente. Os outros enredos eram mais diretos. Agora, a gente pensou “qual a mensagem que queremos passar?”, “como essa mensagem chegará?”, dois minutos só... Complicadíssimo.
R: Mesmo assim dará para identificar nossa marquinha, sabe? A gente tentou se moldar, reinventar, mas querendo que as pessoas continuem a identificar que ali é o nosso trabalho.


Carnavalize: Como enxergam o panorama atual do quesito, diante das crises existentes no carnaval? Acham que a apresentação das comissões de frente condiz com a realidade das escolas?

P: Muito complicado. O quesito realmente está em um momento de transição e tentando se encontrar. A culpa também é nossa (dos profissionais de comissão de frente). Houve uma fase em que o céu era o limite, e agora a gente tem essa realidade financeira do carnaval. É muito bom a gente ter que voltar para nossa criatividade, sim, e isso é uma coisa que a Mangueira está ajudando bastante a gente. É um momento complicado do país, não dá para gente enlouquecer e ser artista mimado.
R: A gente tem que saber até onde a gente pode ir. Não adianta a gente ficar sonhando e o negócio não vai acontecer. Vamos até onde a gente consegue, até onde a gente pode ir. Foi esse o nosso pensamento em relação ao projeto desse ano.
P: A gente já viveu de tudo, então para gente é tranquilo. Mas a realidade é outra. A gente já tem experiência de lidar com essas situações, então se nos derem muito dinheiro a gente fará, se derem pouco dinheiro a gente fará.


Carnavalize: E a realidade do julgamento, consideram válida e com critérios bem definidos?

P: Cada ano é um projeto diferente. Ano passado, o Renato Lage vinha com telão de led, vinha com vários neons, era uma escola tecnológica. Por que não apostar em uma ideia tecnológica se o desfile pede isso? Foi assim também no ano da bola. Era um projeto internacional, tem transportadora... Mas era tudo dentro da realidade. Se você se justifica sua ideia, sendo grande ou pequena, está tudo certo. O que não pode, na minha opinião, é trazer um elemento gigantesco só por ser grande, com gratuidade. Por outro lado, o jurado às vezes espera da gente coisas que o enredo não pede. É complicado estar na nossa pele e dar um buffet que agrade a todos, e a gente conhece nossos jurados, conhecemos o que eles gostam.
R: A gente carrega isso (a expectativa) um pouco. Há uma comparação de nós com nós mesmos. Os critérios de julgamento acabam nebulosos.


Carnavalize: Já desistiram de algum projeto e alguma ideia por conta de risco?

P: Não desistimos de nenhum projeto, mas eu teria desistido do carro (Unidos da Tijuca, 2014) pelo risco. E outro que foi muito arriscado e eu não faria de novo foi o Thor (Unidos da Tijuca, 2013), com os bailarinos lá em cima.

"Não é que não queremos ser identificados como casal segredo, casal que faz mágica, mas há projetos e projetos, enredos e enredos."

Carnavalize: A chegada do Davi deve impactar em diversos aspectos a vida de vocês! Estão sentindo alguma diferença no próprio processo de criação da comissão de frente com o guri no mundo?

P: Eu acho que foi muito bacana porque eu estava grávida no carnaval passado, e a gente tentou engravidar durante alguns anos em um período que não atrapalhasse. Eu não queria estar com um mês de gestação na avenida, subindo em tripé, mas está aí, deu tudo certo. Conseguimos passar por aquele carnaval, estamos conseguindo passar por esse, e está super tranquilo. Achei que seria um caos, mas eu estou muito mais calma com ele.


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Por Redação Carnavalize


Após entrevistar o carnavalesco Leandro Viera, da Estação Primeira de Mangueira, e após entrevistar João Vitor Araújo, da Unidos de Padre Miguel, o Carnavalize dá continuidade a essa temporada da série Processos da Criação com Jorge Caribé.

Caribé assinará pelo segundo ano consecutivo o carnaval do Império da Tijuca. Com uma vasta experiência nos desfiles das escolas de samba em diversos grupos e cidades, o carnavalesco é popularmente conhecido por sua capacidade de reaproveitamento de materiais e sua associação aos temas “afro”!

Então se liga aí e leia a conversa que a gente bateu com o carnavalesco no barracão do Império sobre seus caminhos e escolhas de concepção carnavalesca!


Carnavalize: Como você vê a questão da reciclagem no carnaval? Como é o processo criativo em cima dessas obras já finalizadas que chegam até você?

Jorge Caribé: Minha inspiração vem da minha religião. Minha fé e minha crença vêm dos meus orixás. Sou nascido e criado dentro do candomblé; pode acontecer o que for, eu vou morrer com eles. Minha formação vem daí porque no candomblé tradicional, do qual eu faço parte, que não é esse candomblé inventivo de hoje, eu sou filho carnal de um pai de santo. Então desde criança eu vi costura de roupas, as coroas, a bordagem – antigamente não tinha coroa – e tive a sorte de meu pai ter sido o primeiro destaque masculino da Unidos de Vila Isabel. Meu pai desfilou de 1976 até 1988, então cresci o vendo fazer fantasia. Ele tinha uma ala chamada “chamego do painho”. Eu saía da escola correndo e ficava louco vendo aquele monte de mulheres costurando e colando, então já tinha essa vontade. Resumo: comecei a desfilar na Unidos de Vila Isabel também, no carnaval de 1980, e nunca mais parei, fui até 2002. Eu fui comissão de frente mirim, destaque de chão, depois fui para ala, virei presidente de ala, fui composição, destaque, carnavalesco no carnaval de 2001…. Enfim, minha formação vem de dentro de casa com essa história da Unidos de Vila Isabel. Eu sempre quis virar carnavalesco, então para responder a essa pergunta…


C: Vamos aproveitar então o gancho dessa história antes que você responda. Como foi essa transição de folião a carnavalesco e esse universo visual já que você cresceu dentro de um terreiro?

JC: Eu já lidava com os lamês, com os panos das roupas dos santos, não tinha aljofre – se chamava strass japonês –, a gente enfiava canutilho, bolinha e miçanga um a um, esse foi meu início, meu “pré-carnaval”. Com essa história da ala do meu pai e da fantasia dele sendo feita dentro de casa, eu já lidava com esse universo desde os 9 anos, colando, fazendo pingentinho…

"É uma coisa que me dá prazer falar do negro, da cultura negra, religião de matriz africana, fé, orixá e alma do negro" 

C: Quando você chega ao posto de carnavalesco você já traz essa questão africana. Os enredos afro permeiam sua carreira inteira e você já fez dos mais diversos tipos…

JC: É isso aí, porque na verdade eu tive a sorte de poder frequentar o barracão da Unidos de Vila Isabel. Eu era um componente bem doente de carnaval e não faltava a nada na Vila e passei a ir para o barracão olhar. O carnavalesco que me deu a oportunidade, na época, foi Max (Lopes). Ele teve uma amizade com meu pai muito particular; quem desenhava para o Max era o Mauro Quintaes, então iam para casa do meu pai jantar e na mesa desenhavam o que meu pai queria, porque ele sempre vinha no abre-alas, e aí eu passei a ver o que era carnaval ao vivo. Ia para lá (barracão) ajudar a fazer florzinha de lisolene e tudo mais. Max também me deu todas as oportunidades. Depois teve Jorge Freitas, que hoje é o rei de São Paulo, também foi muito meu amigo e fez três carnavais pela Unidos de Vila Isabel que foram muito bacanas. Também tive a oportunidade de trabalhar para o Oswaldo Jardim, que era um mestre…. Enfim, com tudo isso eu consegui uma prática involuntariamente com aqueles momentos em que se fazia carnavais deslumbrantes.
Quando eu decidi e disse “agora eu vou”, por coincidência, quase todos os enredos que eu desenvolvi, sendo meus ou não, levavam para temática negra. Eu estreei na Lins Imperial, no carnaval do ano 2000. Quando eu cheguei na escola, a presidente me perguntou se eu tinha alguma proposta e eu respondi: “um monte” (risos), já tinha mais de cinquenta ideias de enredos na minha cabeça. E ela me disse que a escola tinha uma dívida de gratidão com o Pai Santana, que foi o primeiro massagista negro do Vasco da Gama e rei congá do carnaval. Acabei traçando um enredo sobre a história dele e a viagem ao Egito e fiz um carnaval em um ano difícil, em que caíam quatro agremiações, e ficamos em terceiro lugar. Fiquei na Lins Imperial cinco anos seguidos, depois voltei e fiz mais um ano. Ali passei por Clara Nunes, falei sobre o cucumbi, até que fomos campeões com Aroldo Melodia. Subi a Lins e fiz uma homenagem aos 75 anos da Mangueira, então já estava bem delineado o meu tipo de carnaval, que era homenagear o negro. De lá para cá, passando por diversas escolas, além de ter sido campeão com a Lins, ganhei com a Inocentes de Belford Roxo, Arranco, Curicica, Em Cima da Hora e sempre falando de negros e orixás das mais diversas formas. Quando cheguei na Portela (para o carnaval de 2009), foi um marco na minha vida e falei sobre o amor, tudo baseado em Oxum. No ano seguinte fiz “Mangueira é Música do Brasil” e veio toda a parte negra musical. Aí, retornei e vim para União de Jacarepaguá de novo com negros, plantas e folhas. Fui para a Renascer…. Não precisa nem lembrar, né? Fiz Candeia sem um centavo, sem qualquer metro de pano novo. Foi muito difícil, mas me valorizou porque eu sabia que podia fazer. Agora estou aqui. Com meu trabalho fiquei seis anos fazendo carnaval na Argentina e desenvolvi carnavais maravilhosos; não foram mais porque acabou. Fui pra Vitória também. Cheguei em Vitória, fiz Angola e fui campeão. É uma coisa que me dá prazer falar do negro, da cultura negra, religião de matriz africana, fé, orixá e alma do negro; estou aqui por causa disso, fazendo esse enredo porque tem negro.

Em 2018, Caribé assinou "Olubajé, um banquete para o rei" junto a Sandro Gomes no mesmo Império da Tijuca

C: E como funciona o processo de pesquisa para achar esses temas? Quais são as origens?

JC: Quando está falando sobre orixás e religião eu tenho, particularmente, um conhecimento bem grande porque vivo isso todo dia por causa da minha religião. Além de carnavalesco, eu sou babalorixá, tenho uma casa de candomblé com quatrocentos filhos de santo. Eu vejo todo dia Iansã, Ogum, Iemanjá, Xangô, Omolum, nem preciso pesquisar. Quando o enredo é temático, como o desse ano, a gente tem que cair para dentro (da pesquisa). Aqui tive a sorte de já ter feito em 2013, na União de Jacarepaguá, um enredo sobre Vassouras. A ideia é a mesma mas não custa dar uma lida, alguém sempre dá uma ideia nova e vamos ao lugar, muda-se alguma coisa, mas não encontrei muita dificuldade. No Especial é outro universo: você tem gente para ler, gente para escrever, desenhar…. É gente para tudo. Eu não sou medroso, não sou inseguro, nunca tive muita dificuldade. Não tenho isso de botar um boneco em algum lugar e depois mudar para outro; se é ali que eu quero, assim será e lá permanecerá. São 19 anos, esse é o meu vigésimo desfile, e houve anos em que assinei três carnavais, então acho que já tenho noção e experiência de barracão. E o principal: ao invés de ir melhorando, só piora a cada ano que passa, então lá atrás eu achei que quando chegasse ao Especial ia me acabar. Quando cheguei não pude fazer tudo, fiz o carnaval com o que tinha. Fui pra Mangueira e o presidente me deu dois contêineres com um monte de coisa do Japão. Quando falam comigo sobre crise e reaproveitamento não é novidade porque sempre tem crise. Quando tem, a gente faz, e quando não tem, a gente faz também. A sorte é você estar numa escola e poder fazer uma escultura, um complemento…. Vem mulher, vira home. Vem cavalo, vira unicórnio. Você transforma tudo, muda de cor, troca rosto, isso é reciclagem. Eu me preocupo com isso tudo porque se você pensar na quantidade de escolas de samba que existem e se todas elas pegam isso tudo e jogam fora, o planeta vai acabar. Toda vez que eu pego um tecido ou um boneco para ser reaproveitado, eu estou contribuindo para o meu país. A reciclagem faz parte do carnaval e eu acho que todos os carnavalescos fazem, inclusive os do Grupo Especial. Não sei se eles vão assumir, mas todo mundo recicla. Eu não tenho medo de falar disso, eu reaproveito, sim, acho que é muito mais difícil do que fazer uma escultura nova. Antes, a gente ia na casa do irmão rico lá na Cidade do Samba e eles abriam as portas; agora, tem que pagar, já vem tudo com precinho. Agora é irmão pobre e irmão miserável. É muito mais gostoso você dar uma cara nova a algo que já vem pronto e as pessoas se surpreenderem com a transformação.


C: Nesse processo de reciclagem, você já olha o desfile de algumas escolas pensando nos determinados materiais que podem ser bons para reaproveitar?

JC: Não funciona bem assim. Como todo carnavalesco e todo sambista a gente olha e diz: “ah, queria ter uma escultura dessa”. Quando acaba o carnaval, todo mundo fica em um tédio que quase vira depressão. Aí você faz o quê? Vai ver vídeo no YouTube. Você não quer ver Sessão da Tarde, não quer ver Globo, não quer ver Corujão, então dana a ver desfile até cansar. Geralmente as escolas já têm uma amizade, uma parceria com A ou B. Se uma escola resolve falar do circo e tem palhaço, tem foca e mais não sei o quê, você já sabe que aquilo tem em tal lugar. Se me perguntam, eu digo: “olha, nosso enredo é cavalo alado. Não tem, mas você pega aquelas zebras ou burros que a gente faz virar” e começa a nossa matemática. Depois a gente vai às compras. Quando vai em alguma escola que não é parceira, a gente vai e tenta pechinchar para tentar pegar também. O que acontece muito, talvez por já ser carnavalesco há vinte anos, é que as pessoas já até procuram e dizem para eu ver algo que de repente possa aproveitar. Eu tenho essa sorte. Acho que tenho entrada em todas as escolas do Grupo Especial, ninguém tem raiva de mim nem fala nada contra. Funciona assim: tira uma pedra daqui e utiliza ali.

"Toda vez que eu pego um tecido ou um boneco para ser reaproveitado, eu estou contribuindo para o meu país. A reciclagem faz parte do carnaval e eu acho que todos os carnavalescos fazem..."

C: Em alguns vídeos e entrevistas nota-se que você carrega nos adereços muitos produtos não tão usuais, como a garrafa pet, bombril…

JC: Tem as garrafas pets, estou fazendo cabelo de boneca com bombril, faço pingente com lata de cerveja…. A quadra fica cheia de lata, então mando vir três mil latinhas e fazemos pingentes para pendurar no carro. Trabalho com tudo que você possa imaginar, inclusive macarrão de piscina; olho para o lixo e penso “aquilo ali vai, aquilo ali sai”.


C: Parece que seu processo de criação é bem mais voltado para o barracão do que pro desenho. 

JC: Eu gosto mais do barracão. Eu desenho para mim, é feio meu desenho, nunca desenvolvi esse dom e era algo que me preocupava. Eu tenho que falar isso, mas depois que descobri que Max não desenha, nem Joãosinho Trinta desenhava, e hoje que os carnavalescos famosos que desenham não se dão esse luxo porque têm equipe de figurinista, fiquei mais leve. Eu tenho figurinista e desenho para ele, faço rabiscos e o garoto vem com o dom que é dele e desenha o figurino. Hoje, eu não tenho vergonha de dizer que não desenho. Os desenhos não viram verdade, na hora a reprodução vira outra coisa. Eu me garanto mesmo em alegorias e adereços, que eu adoro. Ala não curto fazer porque não tenho paciência de fazer oito mil broches iguais. Eu deixo eles bem à vontade, entrego o projeto e quando eles montam o protótipo me chamam e eu opino o que tem de mais e de menos. Eu boto cadeira do lado e fico sentado para ver a montagem dos carros.


C: Você já fez uma parceria com o Sandro Gomes. Como era a divisão do trabalho?

JC: Automaticamente, as coisas vão se delineando. Como eu disse, eu gosto dos carros, então tomei conta dessa parte e ele foi cuidar de outras coisas. Uma coisa é fato: é muito difícil trabalhar com duas ou três pessoas. As ideias uma hora batem de frente e você tem que ter muita afinidade e cuidado para não estragar a amizade fora da escola de samba. Se tem uma coisa que já decidi na minha vida e que eu não permito é trabalhar com duas ou três pessoas. Se der certo, parabéns para mim e para equipe; se der errado, faz parte. Por isso que estou no Império da Tijuca em carreira solo, só tem eu de carnavalesco, não tenho assessores, não tenho ninguém para falar nas minhas costas porque estou aqui todos os dias. E eu não deixo dúvidas de que sou a pessoa que diz: vamos fazer o carro, o queijo, o boneco…. Faço uma coisa de cada, sempre do lado, e deixo a equipe seguir com o trabalho. Peço muito a Deus e aos orixás para que daqui pra frente, enquanto eu trabalhar, siga como carnavalesco, porque dois não dá. É muita vaidade. Hoje também tem aquele problema: uma aderecista cola paetê e daqui a pouco diz que a criação é dele e não é…. Cada um no seu quadrado. É um meio de vaidade muito grande, então não quero mais.


C: Quais histórias curiosas desse processo criativo foram interferidas pela sua experiência religiosa e ligação com os orixás? Já colocou determinado material no carro por saber que precisava daquilo para contar a história, por exemplo?

JC: Uso a minha religião como referência e livro-chave, como ano passado com Olubajé. Eu faço Olubajé na minha casa todo ano, então é uma coisa que influencia muito e fica mais fácil de realizar. Se você quer fazer uma escultura e o profissional não está entendendo, traz uma peça de casa e mostra o que quer. Mas eu sou terrivelmente contra vulgarizar. Eu faço enredo de orixá superficialmente, não boto nada que revele algum segredo, não aceito fazer macumba em carro alegórico, botar comidinha pra Exú…. Eu acho que Exú é Exú lá, ele recebe presentes lá. Se eu estiver de bem e em comunhão com todos eles, a energia que vai emanar de lá vai abençoar o meu trabalho aqui. Não gosto que misture, que tenha macumba, que bote fita amarrada em carro alegórico, faz defumador, mata cabrito…. Não é isso em um desfile de escola de samba. Quando eu falo da minha religião, eu quero provar para quem é leigo que não é essas coisas que eles falam de satanás e tudo mais. Quem conhece fica feliz e quem não conhece aprende e passa a admirar. Eu gosto de falar de coisas que eu acredito e usar o veículo do carnaval para propagar o lado bom da coisa. Essa é minha finalidade: tem gente que usa carnaval para falar de política, fazer crítica…. Eu uso para render homenagens à minha crença, que também é a crença da escola de samba. Para quem tem um pouco de noção, sabe-se que escola de samba é diferente de carnaval. Carnaval é uma manifestação e escola de samba é escola de samba; ela existe independentemente de ser carnaval ou não. O samba nasceu no terreiro da Tia Ciata, que era filha de santo, feita de Oxum, e que na prática das casas religiosas daquela época o candomblé era a noite inteira porque era proibido fazer de dia. Quando ele terminava às 5h da manhã, existia uma coisa chamada samba de caboclo. Hoje você vê candomblé no meio da rua, mas naquela época era nos fundos da casa. Enchiam de crianças brincando para despistar a polícia. E quando acabava o candomblé começava no próprio tambor um samba de caboclo, que se chama samba de terreiro, em que as filhas de santo sambavam com aquelas saias, rebolavam com aquelas anáguas todas e ali surgiu a primeira escola de samba. Então para mim desfile de escola de samba é sagrado, tem ritual, tem abertura, tem o motivo de saudar a porta-bandeira, o canto da quadra…. E o que eu acho mais bonito de tudo isso: por que nós temos ala de baiana? A baiana ela vem dessa tradição nagô. E por que ela usa essas fitas, laços, saias, bordados e babados tal como a vestimenta das filhas de santo do candomblé? Porque quando as negras escravizadas vieram ao Brasil chegaram nuas e quando foram vendidas e foram para as senzalas, algumas eram escolhidas para migrar da senzala para casa grande, ou por interesse do sinhôzinho ou porque eram boas para cuidar de criança. E com isso a mulher do cara, louca de ciúmes, pegavam as vestimentas de origem portuguesa, inglesa e espanhola e davam para as negras se vestirem - roupas essas que eram blusas com mangas, saias, babados e laços de fita. Só que à noite, quando iam dormir, a negrinha lá de dentro voltava para senzala para macumba, porque o culto deles era de noite. Então elas rodavam, aí a Oxum e Iemanjá vinham com saias, laços e babados, e tornou-se a vestimenta do candomblé tipicamente brasileiro. Não há candomblé na África. Essas negras introduziram essas vestimentas que elas utilizavam e surgiram os santos do candomblé, e de manhã iam rodar nas escolas de samba. Olha a importância do que é uma escola de samba, uma ala de baianas e por quê ela existe; não conta ponto, mas ela é obrigatória, ali está o fundamento de uma escola de samba. Dá um enredo, hein!

"Você vê que são pessoas despreparadas, mas não me assustam porque minha religião é de resistência."

C: Você falou do carnaval enquanto esse simulacro que não é a festa religiosa em si, mas no momento em que se leva o candomblé para o carnaval também acaba sendo político pelo momento de intolerância que vivemos, pelo gestor da cidade que temos. Como você enxerga isso?

JC: Eu não visualizo hoje esse terror que se transformou porque nunca foi diferente, porque estou há quarenta e oito anos militando dentro do candomblé e nunca foi diferente. Pode ter tido um governo ou outro melhor, mas sempre houve preconceito, inclusive do vizinho, porque você bate macumba até dez horas da noite e ele quer reclamar. Tem preconceito por parte dos familiares das pessoas que frequentam. Eu sei disso porque tem uma mulher que quer fazer o santo na minha casa e o marido não quer. Tem gente que faz o santo e me diz: pai, e agora? Como vou voltar para o meu emprego? Você hoje faz o santo da pessoa e ela sai de lá sem nada. Na rua você corre risco de ser agredido, apedrejado e até de tirarem as coisas do teu corpo. Infelizmente, com os gestores que temos no país, e aqui no Rio temos prefeito, governador e presidente completamente ignorantes, poderiam ser budistas, hare krishnas e o cacete que eles quisessem, mas eles estão gerindo um Estado que deveria ser laico. A doença já começa na cabeça deles. Você vê que são pessoas despreparadas, mas não me assustam porque minha religião é de resistência. Você vai na igreja evangélica, assiste três cultos e vê que dá dinheiro e começa a botar uma cortina vermelha na sua garagem e louvar a Deus gritando igual a um louco. Com isso, em dois minutos você arranca dinheiro de todo mundo porque as pessoas andam muito fragilizadas e em busca de algo desconhecido, e assim vão andando por várias religiões. Tua igreja daqui a três meses é um palácio porque daqui a pouco vem um dos mandas-chuvas daquelas igrejas enormes e levanta tua igreja para você dividir o lucro. O candomblé não é assim, ele sempre foi e vai ser uma religião de luta. Você começa com tudo pequenininho, até porque os orixás não admitem esses castelos e luxos, gostam de coisas muito simples, limpas, organizadas e é uma religião de matriz africana. Você não pode fazer uma casa pra Omolu e encher de brilho, pisca-pisca, porque é um orixá que não pega isso. É uma religião mais sacrificada. Quando vem o enredo da escola de samba, eu acho que serve para esclarecimento do leigo. 

A União de Jacarepaguá, assinada por Jorge Caribé em 2013, trouxe Vassouras para a Sapucaí (Foto: Raphael David/RioTur)

C: Falando sobre o carnaval de 2019, como esse enredo chega para você e o que pode ser dito desse processo?

JC: Como eu disse, já havia feito esse enredo, em 2013, um ano em que a escola (União de Jacarepaguá) era favorita ao descenso. O favoritismo não aconteceu, o que foi uma grata surpresa. Aqui, a ideia veio de um diretor e inicialmente seria sobre Vassouras, mas foi estendido a outros quinze municípios. Resumindo, a história é muito bacana, e a gente divide em quatro partes - porque só pode haver quatro carros na Avenida. Primeiro, com a chegada do negro. Para minha surpresa, a maior contingência de escravizados veio aqui pra Vassouras, coisa que eu não sabia. Você pensa em Bahia, mas trezentos mil negros vieram para fazer parte da lavoura do café. Pronto, já me interessou. O Vale do Café é terra desses barões e dos negros escravizados, então estamos fazendo esse enredo porque sem os negros não haveria barões. A gente abre o desfile enaltecendo a força, o suor e o sangue do negro que alimenta a semente do café e até dizemos que a semente é vermelha. Será um abre-alas de cinquenta e dois metros de comprimento com dois chassis acoplados e mais um tripé, onde fazemos uma aldeia africana em terras brasileiras para mostrar que o negro não veio só acorrentado para plantar, mas que nas horas vagas eles iam enaltecer os orixás deles. O abre-alas é um grande Império do Café. A coincidência do enredo é que o Morro da Formiga também era um grande vale de café, ainda tem lá até hoje. Quando eu olho a bandeira da escola, é uma coroa com dois ramos de café. Dali, começamos a misturar os negros com os barões, na abertura do segundo setor, e trazemos o requinte do tomar o café, as xícaras de porcelana e os bailes da corte. Misturamos a nobreza ao café do negro. O segundo carro é uma homenagem à Nossa Senhora da Conceição, a santa padroeira do Império da Tijuca, que foi fundado em oito de dezembro. No sincretismo - que eu sou contra - ela simboliza Oxum, que nasceu três mil anos antes dela, e poderia ser sua mãe, na verdade. Após as missas da igreja em que o negro era obrigado a se converter ao catolicismo, surgem as festas, os folguedos e o folclore que são justamente a relação do negro com as festas da igreja católica, a festa do divino, a folia de reis…. E no Morro da Formiga tem três folias de reis que ainda desfilam e estarão no nosso carnaval. Aí vem o carro dos diabos, da carrocinha, das xícaras e bules e passamos para o legado que o Vale deixou. Hoje não se vive mais de café, mas do turismo, de fazendas com criação de (cavalos) mangalargas, de indústrias automobilísticas e também da Universidade de Vassouras, uma das melhores do país. O Cazuza se formou lá. Tem mineração, cervejaria…. A gente tem uma última alegoria que é exatamente uma estação ferroviária, o ponto de partida e de chegada, onde traremos a mãe do Cazuza, a velha guarda, os jovens da universidade uniformizados e todos que são parte desse legado. A última ala do desfile traz o café no morro. É uma história paralela; o Vale e a Tijuca.

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