• Home
  • Quem somos?
  • Contato
  • Lojinha
  • Exposições
  • Selo Literário
  • Apoiadores
Tecnologia do Blogger.
facebook twitter instagram

Carnavalize

O Quilombo do Samba é um coletivo negro de pesquisadores do carnaval brasileiro propondo uma discussão afrocentrada sobre a festa. Quinzenalmente aos sábados, suas reflexões vão ar aqui no Carnavalize.


Texto: Vivian Pereira


O corpo é a porção da matéria que marca nossa presença no mundo. É o local em que guardamos nossa herança genética, no qual se manifestam as nossas vontades, desejos e o que foi aprendido ao longo de nossa trajetória. Por isso, além de construção biológica, o corpo é também um produto de construção social, em que carregamos, nas representações culturais e simbólicas, uma sociedade. 

Nas representações cartesianas, o corpo é um conjunto de átomos, moléculas, células que formam órgãos. Nas cosmogonias africanas, porém, o corpo é uma particularidade cultural. A música, a dança, a pintura e a evocação dos ancestrais são modos de celebrar a vida. Na cultura africana, o corpo é parte da criação material e imaterial. Além disso, o corpo é veículo entre o mundo visível e invisível. É o território de formação da identidade e de pertencimento, em que os saberes fluem e se reconfiguram. O corpo é lugar de convivências e de experiências que agrega a memória ancestral, a circularidade da vida e o sentimento de pertencimento. O corpo negro não é um corpo individual, mas sim um corpo comunitário, participativo, no qual se estabelece uma identidade coletiva. 

Arte: Osmar Filho.

Quando falamos em oralidade, o corpo se comporta como portador da memória, da herança, aquele que guarda as histórias. Essa memória corporal se manifesta nas festas, rituais e cerimônias – cada uma com seu significado, mas sempre buscando conexão entre os mundos interior e exterior, o mundo real e espiritual. Expressam uma de organização social que define o papel dos indivíduos dentro da sociedade.

Durante a diáspora forçada, os corpos negros tornaram-se receptáculos da memória de diversos povos. Impedidos de trazer consigo seus pertences, objetos sagrados ou não, seus corpos se tornaram ferramenta e linguagem, abrigo simbólico e expressivo da memória de suas danças e rituais, com objetivo de manter sua identidade cultural. O corpo se tornou o arquivo da memória coletiva. O corpo africano que foi objetificado, coisificado, também se coloca como um arquivo que carregava o registro de muitas experiências. Essas memórias foram úteis para sobrevivência no Novo Mundo. 

A reorganização social teve suporte no corpo para reestabelecer, de alguma forma, os vínculos com a África. Citando Muniz Sodré, em O terreiro e a cidade, o negro no Brasil resistiu e impediu que seu corpo fosse feito de máquina coisificada. Ao invés disso, seu corpo foi plástico, cheio de vitalidade, firmando-se nos quilombos e nas cidades e reconstruindo, aqui, uma África na palavra, no corpo, na música, no ritmo, na ancestralidade. Seja pela religiosidade, pela dança ou pela luta, a expressão corporal foi instrumento de resistência e construção da identidade. 

No texto anterior, falamos sobre a musicalidade, os batuques das escolas de samba, a herança africana. Pois bem: se o batuque é troca de energia, como falamos, o corpo é o instrumento por onde a energia passa. Muniz Sodré, em Samba: o dono do corpo, diz que o samba é formado por uma síncopa; a ausência no compasso da marcação de um tempo que repercute em outro tempo mais forte. Essa síncopa incita quem ouve o samba a preencher esse vazio com palmas, balanços, danças. Esse corpo que palmeia, que balança e dança é o mesmo corpo que a escravatura tentou coisificar e reprimir: o corpo negro. 

O corpo, então, é parte do samba. As mãos que batucam, os pés que batem no chão, os quadris que se movem fazem e são a alma do samba, pelos caminhos em que se flui a energia do som. O samba, logo, é mais do que a expressão cultural de um povo. É um instrumento de luta para a afirmação negra na sociedade brasileira. O som – nesse caso, o samba – é resultado de um processo em que um corpo busca contato com outro corpo para acionar o axé. Assim, a música e o corpo estão interligados. A música pode ser elaborada através dos movimentos do corpo, dos pés que batem no chão em protesto, das mão que batem no peito demonstrando força ou dos quadris e pernas que gingam mostrando agilidade; ou o corpo que dança pode dar forma, pode ser a versão visual da música. Essa relação música – corpo vai ainda mais além, sendo um meio de comunicação, afirmação e identificação social ou um ato de dramatização.  

Arte: Osmar Filho.

O que são os desfiles das escolas de samba senão um ato de comunicação, afirmação de identidade e uma dramatização? Os corpos que formam o cortejo estão ali defendendo a identidade de sua comunidade, o seu pavilhão. Quando os passistas sambam, as baianas e a porta-bandeira giram, o mestre-sala risca o chão da Sapucaí e toda a comunidade canta e dança, eles dão forma ao batuque da bateria, eles contam a história da comunidade e também do enredo; comunicam-se ao público a sua alegria em estar ali, fazendo parte daquele cortejo sagrado e profano.  

Pensemos por que as baianas e as porta-bandeiras giram. As primeiras são as grandes matriarcas do samba, símbolo de cuidado e afeto, e guardam o axé dos ancestres; as segundas, carregam, guardam e defendem o pavilhão, símbolo maior de uma escola de samba, que contém o axé da comunidade. Essas duas figuras giram para espalhar a energia vital, o axé para toda a comunidade que participa do cortejo. Tempos atrás as porta-bandeiras desfilavam à frente das baterias. Por quê? O batuque gera som. Som é energia que surge da interação do corpo do ritmista com o couro do instrumento. Quando a porta-bandeira gira, ela recolhe o axé oriundo da batucada, que se junta ao axé do pavilhão, e espalha para todos. Energia que faz todo mundo cantar, sambar; energia que faz a comunicação entre os mundos visíveis e invisíveis. 

Arte: Osmar Filho.

Vejamos, agora, as rainhas de bateria. Não é uma obrigatoriedade, não conta ponto para a escola, porém, quando paramos para analisar, é um posto carregado de significados e simbologias. Ela reina porque personifica o som da batucada, seu corpo, sua ginga, preenche a síncopa do samba – ela é o samba. Portanto, uma rainha de bateria é aquela que, com seu corpo, dá vida ao som que sai da bateria.
  
Assim, ritmo e corpo se complementam, formando o samba. O corpo é o elemento gerador do som, a voz, o batucar dos instrumentos, mas também é o elemento que dá vida ao ritmo. Baianas, passistas, porta-bandeiras, rainhas de bateria, intérpretes e ritmistas são alguns dos corpos que captam e emanam a energia do samba. Eles e elas materializam e dão visualidade ao som preenchendo sua síncopa, formando o samba, ritmo-dança africano e diaspórico. Corpos negros que se unem nas quadras, nas ruas ou na Avenida formando um corpo único e ancestral chamado escola de samba. 


 

Share
Tweet
Pin
Share
1 Comments


Agora o Carnavalize está no YouTube!

No nosso primeiro vídeo, traçamos um panorama de várias referências artísticas e características do trabalho requintado de Leandro Vieira. O carnavalesco passeia por um trânsito de obras populares e institucionalizadas, sem nunca perder uma forte veia da brasilidade!

#Panorâmica é a nossa coluna no canal dedicada a pesquisar e investigar a atuação de grandes nomes do carnaval e a sua contribuição para a festa. 

Confira o vídeo: 



Todas as terças e quintas traremos vídeos inéditos e especiais a vocês - sempre com o propósito de enaltecer as escolas de samba como expressões artísticas fundamentais da cultura do nosso país!

Texto: Leonardo Antan e Felipe Tinoco 
Narração: Felipe Tinoco 
Edição: Pedro Umberto 
Capa: Vitor Melo
Vinheta: Lucas Monteiro 

Para nos apoiar a produzir conteúdo de qualidade, conheça nosso programa de apadrinhamento, no PADRIM: https://www.padrim.com.br/carnavalize

 

Share
Tweet
Pin
Share
No Comments

 


Texto: Eryck Quirino e João Vitor Silveira
Revisão: Luise Campos 

Investigar ritmos é perceber as ligações de um universo quase à parte, no qual as conversas se dão por sinais e pela batuta aguda dos apitos, os quais se manifestam a todo momento ditando o andamento do som. Assim, os símbolos visuais e auditivos das direções de bateria chamam a atenção dos ritmistas e se misturam na complexa melodia da orquestra que conduz a escola em sua caminhada. É dela a missão de ser a primeira ala a começar o desfile e a última a encontrar a linha final.

Para trilhar a nossa última viagem da série Batuques, iremos aproveitar a nossa última parada, que foi em Madureira, embarcar na estação de trem mais próxima, rumando para a Zona Oeste do Rio de Janeiro. Uma viagem curta, na companhia dos infalíveis representantes do comércio alternativo que tomam esse meio de transporte na cidade, nos fará chegar até Padre Miguel.

Se voltarmos no tempo, encontraremos os bambas que fundaram a Mocidade Independente de Padre Miguel se congregando por intermédio do esporte da bola redonda que tanto cativa nosso país. Assim como a União da Ilha do Governador, a Mocidade também se originou por intermédio de um time de futebol local. É em meio aos batuques, que comandavam os festejos após as partidas vitoriosas do Independente Futebol Clube, sempre regadas à batida de limão, que a escola é fundada e coloca de vez a Zona Oeste no mapa do Carnaval. 

Fundada em 10 de novembro de 1955, a Mocidade Independente protagonizou diversos momentos importantíssimos para a história da festa como a conhecemos, em todos os seus aspectos. Mas, possivelmente, o mais determinante deles foi a influência que a bateria de Padre Miguel teve para a transformação das demais baterias das escolas de samba em todo o país. E, como não poderia ser diferente, são esses códigos e histórias que iremos abordar mais a fundo nesse texto, para falar da Não Existe Mais Quente.

Padre Miguel é a capital da escola de samba que bate melhor no Carnaval

Mestre André na batuta da Bateria Independente no desfile campeão de 1979. Foto: O Globo

E se o Mestre André sempre dizia, não seríamos nós a discordar dele: ninguém segura essa bateria. Realmente, é impossível falar dela sem primeiro trazer à baila essa grande figura do Carnaval carioca, tido por muitos como o “Mestre dos Mestres” - o icônico Mestre André que, na verdade, se chamava José.

José Pereira da Silva foi técnico do Independente Futebol Clube, time a partir do qual foi fundada a Mocidade, e encantou a escola desde antes de assumir o cargo pelo qual entraria para a História. Ainda no bloco Mocidade do Independente, surgido antes da escola de samba, Mestre André foi baliza para o estandarte, mas tão logo a escola foi fundada ele se tornou mestre de bateria, em 1956. 

E após se investir da função, Mestre André conduziu a bateria da Mocidade Independente para um patamar sem precedentes. Durante muito tempo da sua gestão à frente da Não Existe Mais Quente, ela era conhecida como uma bateria que tinha uma escola de samba, e não ao contrário, tamanha a marca e identidade que foram empregadas pelo mestre e seus diretores e ritmistas no Carnaval. Dessa forma, aqueles que testemunharam seu trabalho reconhecem a singularidade que foi. Zé Bolinho, que foi ritmista sob a batuta de André, diz: “Assim como os grandes craques do futebol, que deixam sua marca única, nunca mais vai existir outro Mestre André.”

Uma das criações que ocorreram sob a sua batuta na Mocidade, tomando todo o mundo do Carnaval de assalto, foi a utilização do surdo de terceira. Junto com Tião Miquimba, Mestre André implementou esse instrumento em sua bateria, criando um balanço inconfundível na bateria independente, além de ser uma ótima ferramenta para ajudar na manutenção do ritmo. A inovação deu tão certo que hoje é utilizada em todas as escolas de samba. Se as ideias de Mestre André tivessem parado por aí, já teria sido suficiente para revolucionar por completo a história do Carnaval, mas sua influência continua. 

Bateria da Mocidade Independente, com todos os ritmistas carecas, no desfile de 1976. Foto: Eurico Dantas | O Globo.

Foi também o criador do chocalho de platinela, que veio para substituir as maracas utilizadas na época. Cumprindo a mesma função, mas com uma sonoridade melhor e mais alta, também foi uma criação que se espalhou pelas escolas de samba. Assim como é de sua autoria a criação das baquetas de tamborim cortadas, feitas a partir de um pedaço de bambu cortando sua ponta em vários pedaços, de forma que o som do tamborim se multiplicava, algo que também se espalhou pelas demais escolas. Pode-se citar ainda que foi sob sua batuta que foi criada a levada de repique clássica, comumente referida como “tucalacatuca”. Mestre André foi um dos grandes responsáveis pelo fato de o instrumento ganhar notoriedade e destaque dentro da bateria. 

Como tratamos anteriormente, tanto na Série Batuques quanto na Série Padroeiros, a influência da religiosidade africana nas baterias é um fator muito marcante, em Padre Miguel não seria diferente. Tia Chica, mãe de santo e baiana da escola que deu as cores do pavilhão da escola teria indicado a Mestre André que fizesse um toque de caixas para honrar o orixá padroeiro da escola e da bateria, Oxóssi. Atendendo o pedido de Tia Chica, o músico conseguiu criar com maestria um toque em cima do agueré de Oxóssi, dando para a bateria da Mocidade uma outra característica única no Carnaval. De forma que sempre que a alviverde pisa na Avenida é possível ouvir a cadência característica, como se a bateria preparasse o cortejo para a caça, em honra do orixá que lhe rege. (Saiba mais aqui)


Essa relação do toque de caixa da bateria da Mocidade com os seus ritmistas e com toda a escola assume um papel muito interessante quando conversam com a sua comunidade, principalmente na ligação com aqueles ligados às religiões de matriz africana. Nesse sentido, Fábio Fabato, jornalista e um dos biógrafos da Mocidade Independente, diz:

“O sentido da caçada é uma questão fundamental, que a gente tem que discorrer. A gente pode imaginar que, como a bateria da Mocidade toca para Oxóssi nesse sentido de caçada, ela desce para o centro numa caçada de axé. É a alegoria perfeita do Orixá de cabeça da escola. Então, a bateria primeiramente com o Mestre André e depois seus herdeiros, sai para essa caçada de axé, para caçar, ganhar, enfeitiçar, roubar o coração dos outros a partir do nosso axé, inserindo esse grupamento pouco conhecido no coração do Rio de Janeiro. E tudo isso tem o dedo, a mão, a alma, o apito, a batuta e o chapeuzinho do Mestre André.” 

Júnior Sampaio e Serrinha Raiz demonstram a interseção entre o Agueré de Oxóssi e a batida de caixa da Mocidade - Vídeo: Batuque Digital


Outra característica única da bateria da Mocidade, também criada nos tempos de Mestre André, é a afinação “invertida” dos surdos da Estrela Guia. Funciona assim: o que ficou comumente convencionado nas baterias das agremiações é que o surdo de primeira, que toca no segundo e quarto tempo do compasso, tem uma afinação grave, enquanto que o surdo de segunda, que toca no primeiro e terceiro tempo do compasso, tem uma afinação médio-aguda ou aguda, a depender do gosto dos diretores. Já na Não Existe Mais Quente, ocorre o contrário. Os surdos de primeira tem uma afinação médio-aguda ou aguda, enquanto os surdos de segunda tem uma afinação grave. Essa característica oferece para a bateria também uma identidade única, fazendo com que seu ritmo seja tão marcante. 

Por fim, além de todas as invenções citadas anteriormente, o legado de Mestre André permanece vivo também por intermédio da criação que talvez seja a mais inovadora: as paradinhas. É difícil pensar nas baterias de hoje e imaginar que houve um tempo em que as baterias não criavam convenções inventivas e complexas para suas apresentações, mas isso começou com o Mestre dos Mestres. 

Reza a lenda que, no ano de 1959, Mestre André conduzia a bateria da Mocidade e, enquanto riscava o chão da Praça Onze, exibindo seu talento no pé, teria caído. No momento de sua queda, seus ritmistas teriam parado de bater nos instrumentos, com exceção de apenas um ritmista, que continuou tocando seu repique. Mestre André, que de bobo não tinha nada, rapidamente se levantou e chamou a bateria para voltar a tocar dentro do compasso, e daí, teria surgido a paradinha. Dessa maneira - ou não -, foi a partir da inovação de Mestre André que não só a Não Existe Mais Quente, como todo o Carnaval se revolucionou.

Ivo Lavadeira (de boina) um dos fundadores do time Independente Futebol Clube, Mestre Djalma “Galo Velho” (de roupa listrada) um dos criadores das primeiras bossas da NEMQ, Tião Miquimba (de branco) que criou o surdo de terceira junto de Mestre André, Madureira (com o óculos pendurado na camisa) ex diretor da bateria. Todos sobre a batuta de Mestre Bereco, no FINEP Seminário Mestre André - o maestro do povo, em 2009. Foto: Fábio Fabato, acervo pessoal


Uma das grandes inovações da Mocidade foi também a criação da bateria mirim, no ano de 1969. Com isso, ficou eternizado um dos maiores momentos do Carnaval, com o encontro da bateria da escola com a dos pequenos, na Avenida Presidente Vargas. Zé Bolinho, que foi ritmista da bateria mirim neste ano, conta:

”Mestre André viu a gente brincando com os instrumentos atrás da quadra quando éramos crianças e perguntou se queríamos tocar. Foi aquela festa, uma animação danada. Ele nos ensinou e ensaiou - e eu me lembro como se fosse hoje - o encontro das duas baterias na Presidente Vargas. Num certo ponto do desfile, ele parou a nossa bateria e a da escola grande começou a tocar. Me emociono só de lembrar que fiz parte desse momento histórico.”

Mestre André, com essa inovação, criava não somente um legado de preservação para a bateria, mas também oferecia àquelas crianças uma atividade, tirando-as do perigoso ócio. 

Uma grande marca da Mocidade Independente de Padre Miguel é a força familiar que mora no seio da escola. Desde os primórdios da escola, isso pode ser mapeado: foi a família Trindade que atuou na fundação e estruturação da escola recém-fundada, passando também por Maria do Siri, que emprestou o terreno para que a escola pudesse conduzir seus ensaios à época, quando a repressão aos sambistas e aos malandros era muito forte e recorrente. E, caminhando pelos laços familiares, chegamos à família Orozimbo, que teve bastante influência no crescimento da bateria da Mocidade Independente. 

Surdo da Mocidade Independente no desfile de 2018. Foto: Dhavid Normando | Riotur

Foi dos Orozimbo que saiu um dos maiores mestres da história, não só da Mocidade Independente, mas de todo o Carnaval. Mestre Jorjão se iniciou na bateria mirim criada pelo Mestre André ainda aos 6 anos de idade, mostrando que o talento e o amor pelo ritmo havia começado cedo. Galgou os degraus comuns aos ritmistas que se destacam e se tornou mestre da Não Existe Mais Quente, carregando no sangue talvez o maior DNA da bateria de Mestre André: o amor pela inovação. Mestre Jorjão era um verdadeiro revolucionário, sem medo de arriscar, mas com conhecimento pleno de cada toque, levada, afinação que queria para as baterias que comandou.

Isso ficou marcado na sua trajetória e se destaca com mais força no ano de 1997, quando na Viradouro levou para a Avenida a famosa paradinha funk, uma momento que ficou marcado para sempre na folia do país. A mistura de ritmos “alheios” ao universo do samba plantaria uma semente para que dali pra frente diversas vezes outros mestres pudessem trazer ritmos mais complexos e diferentes para a realização de algumas paradinhas. Ainda que, no âmbito pessoal, tivesse um jeito sério, Jorjão era conhecido por ter um grande coração, além do talento e liderança inegáveis, que foram laureados com os dois Estandartes de Ouro que ganhou no comando da bateria da Mocidade, além do prêmio “Mestre André” de destaque do Carnaval de 1988, digno de alguém que veio dessa frondosa árvore. 

Mestre Dudu na batuta da Não Existe Mais Quente no desfile de 201. Foto: Gabriel Monteiro | Riotur

Outra relação familiar bem marcante na história da bateria da alviverde é a árvore genealógica da família do grande Mestre Coé, que comandou a Não Existe Mais Quente de 1995 até 2004. Seu filho trilhou seus passos, tendo adentrado a bateria da Estrelinha da Mocidade com 8 anos, mostrando que a semente plantada por Mestre André, a de ter um lugar em que essa renovação fosse feita de forma orgânica, segue dando certo. O menino se apaixonou pelo repique e trilhou vários caminhos na bateria da Estrelinha da Mocidade chegando a ser o mestre da escola mirim, para depois se tornar diretor de seu próprio pai. Hoje, mestre de Bateria da Mocidade, o mestre Dudu carrega consigo a tradição do trabalho em família, tendo ao seu lado como diretor o seu irmão Henrique Arcanjo, além de também dar continuidade ao enorme legado de mestres da Mocidade, mantendo o ritmo que marcou a escola e mostrando que uma agremiação que alimenta suas raízes sempre terá frutos a colher.

E não há como falar do legado familiar da Mocidade sem trazer a história da família Quirino. Essa história teve início em 1924, com o nascimento de Quirino da Silva Lopes, que pisou forte nesse chão, com orgulho de sua negritude, ainda que lidasse com a repressão aos sambistas naquele tempo. Nadando contra a corrente que buscava apagar a história, costumes e cultura da negritude, fez de tudo para dar continuidade à sua veia artística, trabalhando em lojas de instrumentos. Com isso, foi primeiramente tocador de pandeiro. Mas foi na cuíca, instrumento que fez pela primeira vez a partir de uma lata de salsicha vazia e uma vareta de bambu, que encontrou o seu lugar, que o consagraria para sempre. 



Assim, sua história se mistura com a caminhada da Mocidade Independente, já que morou na Zona Oeste e viu de perto o crescimento da escola de samba na qual trilharia uma gigantesca caminhada, tendo orgulho de ter posto terra no terreiro da Coronel Tamarino. Iniciou sua trajetória esquentando couro para ajudar na afinação dos instrumentos, até ingressar a bateria com sua cuíca, marcando seu lugar na história. Demonstrando seu talento, viajou o mundo com Mestre André e a Mocidade, tendo inclusive um de seus solos de cuíca eternizados na gravação “Cuíca no Samba de Uma Nota Só”, de produção de Tom Jobim.

Seu legado se eternizou a partir do seu querido instrumento, que levou para as viagens pelo mundo e, em cada lugar que passava, pegava alguma das moedas locais para colocar em sua lendária cuíca, marcando não só a história do instrumento no Brasil, com um legado de conhecimento que jamais se perderá, mas criando também uma herança física. A famosa “cuíca com as moedas” acompanhou Seu Quirino até 2006, quando ele deixou de tocá-la, mas passou para as mãos de seu filho, Quirininho, que já era percussionista e assumiu o legado do pai. Em 2010, essa lendária cuíca chegou às mãos de Eryck Quirino Neto, a terceira geração dessa grande família a pisar na Sapucaí, carregando não apenas o legado histórico do instrumento, mas novamente a cuíca cheia de moedas, que marcou história não só na bateria da Mocidade, mas também em todo o Carnaval.

As três gerações da família Quirino: Mestre Quirino, Quirino Neto e Quirininho.


Com esse capítulo, encerramos hoje a Série Batuques, na qual tivemos a honra de desvendar juntos os códigos e as mensagens que algumas das tantas baterias das escolas de samba do Rio de Janeiro trazem em seus toques e batuques. Eu, João Vítor, agradeço ao Eryck pela parceria, e também pela honra de contar um pouco da história da sua família. É baseado nessas relações inquebráveis que o samba se perpetua e não morre jamais.

Salve a cuíca, salve os Quirinos, salve a Mocidade!

Se ainda não leu, confira os demais textos da Série Batuques sobre o Partido Alto (Estácio, Tijuca, Salgueiro e Vila Isabel); a batida do surdo um da Estação Primeira de Mangueira e o O baticum majestoso da Portela, imperial da Serrinha e insulano.

Além da Série #Batuques, você pode conferir também a #SérieMulheres, lançada às segundas do mês de agosto. 


















Share
Tweet
Pin
Share
1 Comments

 


Texto: Beatriz Freire
Revisão: Luise Campos 

Mês a mês mergulhando em diversos universos particulares que formam as complexas organizações que são as escolas de samba, o Carnavalize decidiu derrubar o protocolo social convencional de evidenciar mulheres apenas em março, quando comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Por isso, durante o mês de agosto, às segundas-feiras, nossos leitores acompanharam em nosso site um novo capítulo de uma série pensada para enaltecer, contar histórias, lembrar figuras e propor reflexões acerca do papel feminino no carnaval. Hoje, no quarto texto, nos despedimos desta temporada com uma única mensagem possível: obrigada! 

Líderes, fundadoras, passistas, rainhas, porta-bandeiras, intérpretes, ritmistas… por onde se repousa o olhar, nota-se a presença feminina nos diversos segmentos das agremiações. Nossa viagem de quatro semanas tem como destino final as fábricas momescas que moldam os sonhos à realidade; elas também arregaçam as mangas e dividem-se entre criação, planejamento, execução e coordenação. Nos barracões, estas heroínas fazem do trabalho uma extensão de seus próprios corpos - já que cada nova forma de esculturas, alegorias e fantasias nasce da força braçal delas - e também um compromisso destinado a sacramentar grandes ideias e narrativas.


Marie Louise Nery: o sopro fundamental para o vendaval 


Em 1957, Marie Louise trocou as baixas temperaturas das cidades suíças pelo calor do Rio de Janeiro, onde desembarcou a contemplar golfinhos em plena baía de Guanabara. Ela não encabeça a lista por coincidência: é considerada a primeira mulher a trabalhar ativamente no desenvolvimento de um desfile de escola de samba. De corpo e coração aquecidos pelo clima tropical e pela energia do cortejo que já encantava Marie, a figurinista e cenógrafa recebeu, ao lado do marido, também cenógrafo e aderecista, Dirceu Nery, o convite de Nelson de Andrade, presidente do Salgueiro, para que juntos assinassem o desfile do carnaval de 1959 da agremiação alvirrubra. 

Foto: Rafael Andrade/Folhapress.

Com Nelson no comando do enredo "Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil", o casal de artistas plásticos ficou responsável pelo planejamento e confecção das fantasias que vestiriam toda a escola; as indumentárias reproduziam gravuras de Jean-Baptiste Debret, principal nome da Missão Artística Francesa e expoente do cotidiano do Brasil colonial, homenageado daquele carnaval. A agremiação optou por não apresentar nenhuma alegoria naquele ano como uma resposta às sucessivas críticas feitas pelo júri que perduraram por cinco carnavais. Sem que existisse propriamente o espaço que conhecemos atualmente por barracão, Marie Louise subia as ladeiras do morro do Salgueiro para trabalhar junto às costureiras e aderecistas da escola. 

Na noite dos desfiles, atrasos e confusões antecederam a passagem do Salgueiro pela Avenida Rio Branco. A escola adentrou a pista como primeira escola daquela noite, subvertendo a ordem original que a designava como quinta agremiação a se apresentar. Em um cortejo que abusou - no melhor sentido da palavra - de bom gosto e teatralização, o requinte e a originalidade estéticas marcaram presença, aliadas a uma narrativa cuidadosamente trabalhada pelo presidente-enredista. Não há como deixar de coroar com louros Marie Louise pela contribuição estética fundamental no desfile vice-campeão que roubou a atenção de um jurado em especial, um tal Fernando Pamplona, e preparou as bases da revolução salgueirense que se reafirmaria no carnaval seguinte.

Um das singelas aulas do desfile salgueirense de 1959. Foto: O Globo.

Mais tarde, Marie seguiu pelas coxias e palcos, prestando serviço a espetáculos, balés e peças de teatro. No carnaval, passou ainda pela Portela e retornou ao Salgueiro, mas encerrou a carreira de lantejoulas e fantasias luxuosas logo após a morte do marido, ao final da década de 1960. Dedicou-se também às salas de aula, quando teve como aluna Rosa Magalhães. Da vida, despediu-se neste maio de 2020, vítima da covid-19, na Suíça, longe do calor do carnaval, eternizada como precursora de nomes femininos e antecessora fundamental de um movimento que mudou os rumos dos desfiles. 


Iemanjá enriqueceu o visual… e fez reluzir o seu brilho feminino


Sobre o já mencionado Pamplona e a já citada revolução salgueirense, convém destacar o grupo tocado pelo artista em seu legado na escola da Tijuca, no qual estavam presentes nomes como Arlindo Rodrigues - o grande parceiro - e Joãosinho Trinta, outro ícone que se revelaria poucos carnavais depois. Porém, em especial, três "pupilas" fizeram arte pelo Salgueiro afora. Maria Augusta, a primeira delas, era aluna da Escola de Belas Artes e junto a Fernando Pamplona trabalhava nas decorações de carnaval do Copacabana Palace. Não tardou para dar expediente pelas bandas do Salgueiro e, em 1969, com o histórico "Bahia de todos os deuses" era componente da frutífera equipe do Professor. Naquele ano, a imagem mais marcante da apresentação foi a imensa alegoria de Iemanjá, repleta de espelhos redondos que reluziram toda a pista à luz do dia. Os caminhos estavam abertos. 

Dois carnavais depois, a mente brilhante da jovem artista propôs a temática a ser contada naquele ano: a escola levaria para o grande público a visita de um rei africano a Pernambuco holandesa de Maurício de Nassau. Não teve quem não pegasse no ganzê e no ganzá; do estalo inicial de Augusta, tudo se materializou e o Salgueiro saiu vitorioso daquele carnaval. 

Maria Augusta posa com a ala que a homenageou no desfile da São Clemente de 2018. Foto: Leonardo Bruno.

Quando a relação entre o pai da revolução e o Torrão Amado amargou, foram ela e o companheiro de equipe, Joãosinho, com quem rivalizaria visual e narrativa em carnavais futuros, os herdeiros diretos do legado do mestre à frente da alvirrubra. Em 1973, faturaram juntos o terceiro lugar com "Eneida, amor e fantasia". Desde o carnaval anterior, em 1972, Augusta já fazia dupla jornada entre o Salgueiro e a ainda inexpressiva União da Ilha do Governador. Para 1974, após o rompimento com a dupla e a escola que havia lhe recebido há cinco carnavais, Augusta tirou aquele e mais um ano sabático à frente da criação artística do carnaval das escolas de samba. Em 1976, voltou às terras insulanas, desta vez para ficar… e fazer história. 

Em 1977, uma inspiração pessoal de Augusta lançou a tricolor como protagonista de um mundo inverso ao luxo e opulência crescentes no carnaval. Criatividade, cores e simplicidade formavam a tríade triunfal da carnavalesca. "Domingo" seria uma ode à alegria da menina que saía do internato em que estudava para aproveitar o dia e desfrutar da companhia da família; uma exaltação à leveza de um dia de descanso, ao contemplar quase sempre desapressado do nascer e do pôr do sol, às comemorações de reuniões e encontros, dentre outras cenas do cotidiano abarcadas por aquele que para alguns é o primeiro, para outros, o último dia da semana. A União da Ilha não veio apenas escandalosamente simples e bela - elementos que se reforçavam mutuamente - mas também brincou no asfalto, conquistando um terceiro lugar. Era aquele o auge de uma trajetória curta e intensa de enredos abstratos e carnavais brincantes, presentes para os olhos e corpos foliões, marcados por sambas inesquecíveis da discografia da escola. 

A visão geral de "O Amanha" em 1978. Foto: Revista Manchete.

No ano seguinte, lançou mão de todo o seu misticismo ao desfilar com o grandioso "O Amanhã". Mais uma boa posição - a Ilha terminou como quarta colocada - chegava pelo segundo ano consecutivo para o currículo da escola que, até então, havia faturado o nono lugar como posição máxima. Em 1979, Augusta teve os caminhos interrompidos após um desentendimento com a diretoria da escola. Consagrada pelos históricos carnavais dos anos anteriores, acabara ali a rápida fase meteórica com a mentora de uma identidade que é associada à agremiação até hoje. Nos anos seguintes, a carnavalesca passou pela Paraíso do Tuiuti, Tradição e, como a vida é grandiosa demais para permitir meras coincidências, encerrou a carreira na Beija-Flor, em 1993, substituindo Joãosinho Trinta, o antigo companheiro que também marcou seu nome na agremiação nilopolitana. Maria Augusta, dona de uma mente criativa única e definitiva para a história carnavalesca, transpira ainda um sentimento comum entre todos os amantes da festa: a emoção de sempre ao relembrar seus feitos no carnaval.

Agora, retomemos o fio que nos conduz ao início dessa história para lembrar que mais duas personagens ajudam a escrever nossas próximas páginas.

Lícia Lacerda e Rosa Magalhães comemoram o título de 1982.

Antes de falarmos propriamente da mais longeva - e campeã - herdeira de Pamplona, passemos por mais uma integrante do fecundo grupo. Lícia Lacerda, também discente da Escola de Belas Artes, marcou sua assinatura no carnaval em parcerias com Rosa Magalhães, nossa próxima personagem, ao faturarem juntas o título pelo Império Serrano com o lendário "Bumbum Paticumbum Prugurundum", em 1982, um "metacarnaval" inspirado em uma ideia de Fernando Pamplona e embalado por suas sucessoras como uma crítica ao grandiosismo que invadia a folia em todos os sentidos. Nos carnavais seguintes, fez passagens rápidas pela Imperatriz Leopoldinense, Estácio de Sá e também pela Tradição, quando foi campeã com a agremiação pelo segundo grupo em 1993 e, em 1994, garantiu uma vaga para a escola dissidente da Portela no desfile das campeãs, com o famoso "Passarinho, passarola, quero ver voar". No carnaval de 1997, um mês antes dos desfiles, deixou a agremiação, que desfilou com o enredo "Do barril ao Brasil", sobre a história da cerveja, terminando rebaixada. Longe do ofício de carnavalesca desde então, Lícia relembra até hoje as dores e delícias da parceria com a amiga, Rosa, e da carreira solo. 


De aluna a professora, eis a soberana artista 


Para destrincharmos bem toda a trajetória desta fundamental figura, precisaríamos esmiuçar surpreendentes cinquenta anos em atividade da maior expoente da arte carnavalesca do nosso país. Filha de dois artistas - o pai das letras e a mãe do teatro -, ela já tinha no sangue um rascunho traçado de caminhos que muito provavelmente a conduziriam pelas criações, figuras e formas. "Faça-se assim", disse a vida. Rosa Magalhães, nem sempre professora - ela também é mais uma artista egressa da EBA -, iniciou a carreira junto às demais companheiras de trabalho nos preparativos dos carnavais salgueirenses de Pamplona. Os passos autônomos, que sinalizavam estar um nível acima da condição de "aprendiz", vieram na década seguinte, em 1974, pela Beija-Flor, quando foi a responsável pelo carnaval "O Brasil no Ano 2000", em plena ditadura militar. 

Rosa comemorou a incrível marca de 50 anos dedicados à folia. Foto: Leo Martins/O Globo

O boom como autora de carnavais veio anos depois, quando, no episódio já mencionado, com Lícia Lacerda fez o desfile campeão do Império Serrano, em 1982. Um feito imenso para duas artistas ainda em busca de experiência, que se consagraram campeãs por uma das mais tradicionais agremiações cariocas. As duas carnavalescas (imaginem se tivéssemos uma dupla de carnavalescas no dias de hoje!) trabalhavam de forma tão coesa que a parceria se alongou por mais dois carnavais: Imperatriz (Alô, mamãe), em 1984, e Estácio de Sá (O ti-ti-ti do sapoti) em 1987. Este último foi a passagem definitiva para Rosa se lançar na carreira solo a partir do ano seguinte. Ali, apareceria um dos seus principais traços: a mistura da história oficial com o cotidiano, entre o fato e a suposição, passeando pelo real e o inventado. Pela escola do São Carlos permaneceu por mais dois carnavais, em 1988 (O boi dá bode) e 1989 (Um, dois, feijão com arroz), vestindo as mesmas narrativas de cunho político que escolas como Caprichosos de Pilares e São Clemente levaram para a pista de desfiles após os primeiros anos de redemocratização.

Em 1990, veio um reencontro rápido com o Salgueiro, importante estágio para a carnavalesca que se tornara até ali, em mais dois desfiles: "Sou amigo do rei", em 1990, e o famoso "Me masso se não passo pela rua do Ouvidor", em 1991, quando conquistou, respectivamente, o terceiro lugar e o vice-campeonato. Apesar das brigas que levaram ao desligamento de Rosa da alvirrubra, estava provado que o grande cortejo das escolas de samba dispunha de uma artista do mais alto nível, herdeira dos ensinamentos valiosos de um mestre e que, mais importante do que serem exatamente assimilados, foram por ela reinterpretados e manifestados à sua própria forma, expressados como uma marca única no universo das escolas de samba.

Uma artista da grandeza de Rosa merecia um acolhimento à altura, digno de rainha. Digno, na verdade, de uma Imperatriz. Ela já havia feito uma breve passagem pela escola de Ramos, em 1984. Mas foi em 1992 que ela assumiu a escola a convite de Viriato Ferreira, iniciando de fato sua marcante trajetória na agremiação. O artista, já com a saúde debilitada, confiou à Rosa o comando da verde e branca. Nasceu, assim, o casamento mais vitorioso da história do carnaval. Ela protagonizou, ainda que não escancaradamente, o duelo principal entre o seu barroco (que talvez venha da devoção aos santos herdada de sua mãe) e o high-tech de Renato Lage na Mocidade Independente. As verde e brancas, uma de Ramos e outra de Padre Miguel, quase brincaram de revezamento entre títulos e disputas acirradas. De 1993 a 2001, Rosa conquistou cinco campeonatos (1994, 1995 e o tri em 1999, 2000 e 2001), dois vices (1993, ano da sua reestreia, e 1996) e um terceiro lugar (1998). A posição mais baixa foi um seguro sexto lugar, em 1997, uma exceção frente à competitividade - e excelência! - dos carnavais de Rosa.

O desfile de 2000 da Imperatriz Leopoldinense, meiuca de um histórico tricampeonato. Foto: Wigder Frota. 

Maior campeã solo da Era Sambódromo, ela saiu vitoriosa em todas as décadas. Após o tri que marcou a virada do século, não conquistou mais nenhum título, mas se reinventou e não sinalizou qualquer desgaste em sua carreira vitoriosa, independente de canecos e notas do júri. Rosa usou e abusou da sua habilidade para introduzir fábulas às narrativas e, como sempre, abalou a estética de alegorias e fantasias, em materiais e formatos, do barroco ao popular, entre anjos, índios e piratas. Em 2009, chegou ao fim o casamento de dezoito inesquecíveis - e prósperos - carnavais pela Imperatriz Leopoldinense. Para 2010, foi contratada pela Ilha do Governador com a missão de não permitir que a escola fosse rebaixada, já que era recém-chegada ao Grupo Especial. Dito e feito. Em uma viagem pelos contos de "Dom Quixote de La Mancha, o cavaleiro dos sonhos impossíveis" a professora garantiu a permanência da escola que recuperou o orgulho de cruzar novamente a Marquês de Sapucaí pelo grupo principal.

Na última década, foi fazer história lá na escola de Noel. Depois de um carnaval sobre cabelos à sua própria moda, embarcou na ideia de Martinho da Vila para cantar Angola no enredo "Você Semba Lá …. Que Eu Sambo Cá! O Canto Livre de Angola". O desfile afro, até então inédito na carreira de Rosa, emocionou componentes e arquibancadas. Por um detalhe a Vila Isabel não terminou campeã, mas faturou o vice. No ano seguinte, com a escola mordida pelo gostinho do "quase" campeonato, a carnavalesca conduziu o enredo "A Vila canta o Brasil, celeiro do mundo. Água no feijão que chegou mais um". A Sapucaí, perto do amanhecer, viu se armar na pista uma verdadeira festa no arraiá; uma emoção em cores, samba e evolução da escola. Na quarta de cinzas, deu azul, branco e… Rosa. A escola saiu vitoriosa e a carnavalesca conquistou mais um título na nova década.

Nos últimos anos, a Mangueira recebeu a professora para um breve carnaval que não rendeu os mesmos frutos que o desfile campeão do ano anterior. Em seguida, a São Clemente se viu possibilitada a sonhar pelos olhos de Rosa, que esteve na escola de 2014 a 2017. Em 2015, uma homenagem da aluna ao mestre Fernando Pamplona arrancou aplausos e fez as lágrimas rolarem durante o desfile da preta e amarela de Botafogo. Apesar de um injusto nono lugar - há quem diga que a escola merecia uma colocação entre as campeãs -, pairou a certeza da maestria da artista. Em 2018 e 2019, sua passagem pela Portela garantiu dois quarto lugares. Em 2020, ano de reencontro com a Estácio de Sá e dos seus cinquenta carnavais em atividade, Rosa teve pela primeira vez o desgosto de um rebaixamento - também injusto. Tudo tem uma primeira vez.

Para o próximo carnaval, ela reencontra a sua parceira mais longeva e frutífera. Rosa, com a experiência que tantos anos de dedicação ao ofício pode trazer, retoma os ares juvenis de quase trinta anos atrás para sentar-se novamente no seu trono de Imperatriz. A contribuição inestimável para o carnaval, dentro e fora da pista, já que ela exportou a festa para grandes eventos europeus, lhe garante a figura de uma artista admirada e ainda muito bem quista por todos. O seu desabrochar nos fez eternos contempladores de sua existência, revestida de beleza modesta e ao mesmo tempo escandalosa que só as flores mais bonitas - as rosas - têm.


As caçadoras de histórias


Mas nem sempre elas estão, necessariamente, investidas nos cargos de carnavalescas. Há, ainda, mulheres que se dedicam à busca pelas histórias a serem narradas. Márcia Lage ocupa um caminho do meio entre esses papéis que até podem se misturar, mas não estão inequivocamente interligados. A cenógrafa viu as escolas de samba cruzarem sua vida de forma mais contundente nos anos 1990, quando era assistente de seu marido, Renato Lage, nos áureos tempos de Mocidade. Os registros só listam Márcia como autora de narrativas e carnavais, efetivamente, a partir de 2002, o último do casal pela escola de Padre Miguel, com "O grande circo místico". 

O trabalho de Márcia é constantemente associada ao marido ou até invisibilizado. Foto: TV Brasil. 
 
Verdade seja dita, o grande público, os dirigentes e mesmo o júri a puseram à margem seu protagonismo exercido no suado e desgastante dia a dia de trabalho em prol da construção de carnavais. Ela esteve presente no Salgueiro por treze carnavais, seguiu pela Grande Rio e pelo segundo ano defenderá as cores da Portela. Em 2009, assinou um carnaval solo pelo Império Serrano, ano em que a escola reeditou o enredo "A lenda das sereias", de 1976. Fato é que Márcia, muitas vezes questionada em sua contribuição para ideias e construções e, podemos dizer, de sua posição fundamental dentro do trabalho que carrega a marca Lage, precisa ser mais reconhecida.

Outra peça fundamental no fazer-pensar do que contam as escolas de samba na Avenida está em Nilópolis. Na Beija-Flor, dentro do molde da famosa comissão de carnaval capitaneada por Laíla durante muitos carnavais, Bianca Berhends, chegada à escola em 2002, é a verdadeira narradora nilopolitana. Cientista social por formação, ela está há nada menos do que vinte carnavais imersa nas pesquisas de enredo da escola. Em 2008, foi premiada com o troféu Plumas e Paetês na categoria pesquisadora. Hoje, Bianca está à frente do Departamento Cultural da escola. 


A herdeira


As brilhantes trajetórias que contamos neste texto marcam uma triste realidade: elas ainda são a exceção. Beira o inimaginável crer que mulheres não sonhem em ser carnavalescas. Nos últimos anos, ainda bem, para além de todo o majestoso trabalho desenvolvido por Rosa, Márcia e Bianca, surgiu Annik Salmon, mais uma egressa da Escola de Belas Artes. Na Porto da Pedra, iniciou a carreira em 2003, como assistente do carnavalesco Alexandre Louzada, a quem acompanhou por mais cinco carnavais, até 2008, em passagens pela Vila Isabel, Cubango e Beija-Flor. A assinatura de um trabalho veio exatamente pela verde e branca de Niterói em 2007, quando integrou a comissão de carnaval responsável pelo enredo que homenageou a cidade de Paracambi. 

Poucos anos mais tarde, em 2009, encontrou Paulo Barros e Alex de Souza, quando trabalhou com eles pela Vila Isabel, no ano que a escola rendeu homenagens ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A partir de então, Paulo Barros a convidou para ser seu "braço direito" no carnaval de 2010 da Unidos da Tijuca, escola para onde o carnavalesco retornara depois de alguns anos. Era impossível prever até o momento em que a escola cruzou a Avenida, mas ela viria a se consagrar campeã com a pontuação máxima. A permanência de toda a equipe esteve, portanto, garantida. Como integrante da agremiação do Borel, Annik participou da conquista de mais dois títulos, em 2012 e 2014. Desfrutou com todo o merecimento do conforto de seguir na escola, já que ela sempre esteve inteirada e participava ativamente de todos os processos de desenvolvimento de cada um desses projetos.


Annik assinou seu primeiro desfile solo em 2020 na Porto da Pedra.

Em 2015, quando Paulo Barros despediu-se da Tijuca, Annik seguiu o próprio caminho e permaneceu na escola para assinar seu primeiro carnaval pelo Grupo Especial como integrante de uma comissão. Logo na "estreia", chegou a um grato quarto lugar. No ano seguinte, em 2016, o enredo que flertava com o agronegócio e a cidade de Sorriso garantiu o vice-campeonato à agremiação. Por lá, a artista adquiriu mais e mais experiência, sempre coordenando as etapas necessárias para o melhor desfile que a escola pudesse apresentar, e garantiu um décimo primeiro lugar - em virtude do trágico acidente com um carro da escola em 2017 - e dois sétimos lugares. 

Em 2020, alçou novos voos: foi assinar seu primeiro carnaval solo, dessa vez, voltando ao grupo de acesso do carnaval carioca, pela Porto da Pedra. Não podemos deixar de assinalar que sua voz se fez ouvir, nessa estreia, num homenagem às personagens femininas fundamentais para o surgimento do samba: o enredo "O que é que a Baiana tem? Do Bonfim à Sapucaí", reverenciou as matriarcas que nos deram a todos nós - a todas nós - chão e fundamento para caminhar. E foi assim, revestida de ancestralidade, que Annik conduziu a escola a um honroso terceiro lugar, que lhe rendeu a renovação do contrato com a agremiação. Para o próximo carnaval, ela segue no intuito de dar visibilidade a narrativas de grandes mulheres: desenvolverá o belíssimo enredo "O caçador que traz alegrias", homenagem à mãe Stella de Oxóssi.


Mãos à obra


Para além de pensar o carnaval artisticamente, também temos uma função que fundamental para que os sonhos e narrativas da folia ganhem vida. E se enganou redondamente quem pensou que o trabalho braçal dos barracões conta apenas com a presença masculina. Elas estão presentes no planejamento, projeção e feitura de alegorias e nada mais justo do que mencionar aqui também algumas das artistas e trabalhadoras que enfrentam a resistência diária às suas presenças causada pelo simples fato de serem mulheres.

A cenógrafa e projetista Penha Lima é um desses exemplos, assim como a escultora Andréa Vieira. As duas tiveram boa parte de suas carreiras dedicadas a acompanhar Rosa Magalhães; Andréa, formada em cenografia pela Escola de Belas Artes, dá formas às esculturas do carnaval há mais de vinte e cinco anos, muitos deles ao lado da professora. Na Inocentes de Belford Roxo, Luana Rios exerce hoje uma função que, infelizmente, não conta com muitas representantes do gênero feminino: é diretora artística de barracão, cargo conquistado após oito anos de suor em diversas agremiações. Ela foi chefe de ateliê de escolas como União do Parque Curicica, Alegria da Zona Sul e Vila Isabel, além de carnavalesca em 2016 pela Arranco do Engenho de Dentro e assistente do carnavalesco Marcus Ferreira no carnaval de 2019, pela Inocentes.

Andréa Vieira posa ao lado de Rosa Magalhães e Mauro Leite com o Emmy conquistado pela equipe. 

E todas as mulheres aqui citadas contam em suas equipes com muitas outras, formando um elo que aqui fazemos questão de visibilizar. Por isso, não podemos deixar de citar as costureiras que se dedicam exaustivamente na confecção de fantasias e às aderecistas que dão forma às decorações das alegorias. Todas elas, certamente, têm seu grau de contribuição para a folia, mostrando na prática o que buscamos dizer nessas quatro semanas com nossos textos da Série Mulheres: elas estão presentes e são capazes de desempenhar qualquer atividade no carnaval. 

Desta forma, finalizando nosso passeio pelos mais diversos espaços que o feminino ocupa dentro das escolas, chegamos ao fim dessa trajetória carregando a documentação de nomes fundamentais de mulheres que criaram e carregam legados, perpetuando a presença feminina dentro das agremiações. Obrigada a todas pela inspiração!

Confira os demais textos da Série Mulheres, que investigam a história das escolas de brasileira pela ótica feminina. O passeio começa pelo seio feminino das ancestrais do samba, segue pelas líderes e fundadoras que fizeram história.  O terceiro capítulo passa pelas Rainhas do canto e da dança: a atuação das mulheres no universo musical, até chegar na Heroínas do barracão: a atuação feminina na construção artística do carnaval



Share
Tweet
Pin
Share
No Comments

 

A coluna #ColabLize é um espaço aberto a seguidores do Carnavalize e pesquisadores de carnaval para divulgar seus escritos sobre nossa folia. Quer enviar algum texto que verse sobre a festa? Mande para nós no e-mail contato@carnavalize.com. A #ColabLize vai ao ar quinzenalmente, sempre aos sábados!


Por Fábio Fabato 

Guri ainda – e é de guri que se aprende a senti-lo, antes até de amá-lo – senti que o carnaval trazia indissociável relação com a rua. Era 1989, ano em que o país voltaria às urnas, após mais de duas décadas de sequestro de suas quimeras. Mãos dadas com meu pai, danei de catar confetes entre os arrepiados paralelepípedos da cidade, guardando os pedacinhos de papel nos bolsos. Tinha seis carnavais apenas. Ele sorriu e me perguntou que diabos eu planejava com aquela pitoresca coleta. A resposta foi rápida, sem pensata elaborada, apenas um moleque embebido em festa para fraquejar as bases de um adulto: “estou guardando um pouquinho da rua para sempre comigo”. Ora, o que é sagrado, profano, sincrético, encruza e cruza de África e Portugal, nos encontros e desencontros de nossa agridoce poesia, deu em folia, esta Saturnália brazuca de identidade e economia fortes, que diz tanto de peles e almas. Mas, antes de tudo, o carnaval é um filho (da gema) de uma disputa. 

Não, não a batalha que termina com o sonhado “dez, nota dez”, ou em décimos perdidos na carona do vozeirão de Perlingeiro, no ensopar da quarta derradeira. Ele é fruto, desde os primórdios, das tensões que envolvem a ocupação de espaço público (aquele mesmo onde repousam os confetes coloridos da memória) e da sanha domesticadora das elites. O enlace do Jogo do Bicho com o samba, por exemplo, emerge do conflito na rua e pela rua. Marginalizados, ambos encontraram no abraço sincero ou interesseiro uma forma de sobrevivência à atmosfera de repressão que vinha de cima. Por vezes, partindo para o pau. Noutras, em afagos de mutualismo descarado. Assim, decolaram. 

Ora, as agremiações nasceram, fundamentalmente, em áreas periféricas e, ocupadas por “benfeitores”, se permitiram a relação de troca em meio ao flutuar em cego dos mistérios de existir. Não à toa o porquê de perdurarem, a despeito de titubeios aqui e acolá. Nesse mesmo passo a passo no compasso, a contravenção amealhou moeda-prestígio, garantida em status e cifras.

Mas o papo aqui são os passeios públicos dos confetes e serpentinas, e o quanto o fomento à sua ocupação com festa representa a própria revolução social que não ensinam nos colégios. Bem, escolas de samba ou blocos – grosso modo – trazem a lógica processional católica (sujeitos em cortejo, munidos de alguma espécie de elemento visual icônico – bandeira, estandarte) – mas a música é preta, batuque para o santo, evocando entidades que a África pariu, ou aquelas que nem mesmo conheceu, netas e bisnetas suas nascidas por cá. E é este estado de nudez da cultura popular o ninho para chocar o ódio das oligarquias, com seus donos brancos que demarcaram a terra secularmente sugada, vaca profana de tetas abertas desde a cobiça dos navegantes das primeiras epopeias oceano adentro.

A folia é a própria antítese das capitanias, já que arranca as cercas do chão dividido para poucos donos e permite – delírio por Constituição – irromper regras históricas. E liberdade, ah, a liberdade incomoda pastores, juízes, capitães (do mato), sobretudo, quando vestem as faixas e vidram os olhos. E tome de pedagogia de massa a partir dos aparelhos estatais repressores, voltados à demonização das diferenças e de artistas, estes massacrados como bandidos ideológicos que devem se curvar a instituições, aurea mediocritas da caneta. O poder é preconceituoso, quarado, acaju, fala alto por cima e bica a canela por baixo. 

Fato é que a ânsia por limitar os destinos de carnes pretas não permitiu o conhecimento geral sobre o impacto do investimento público em carnaval. Talvez, sequer saibam a joia rara que manipulam sem lapidar: são quase R$ 4 bi (dados da Riotur) movimentados, anualmente, na cidade. O delírio de virarmos uma Noruega tropical é tangível, justamente, nos famosos quatro dias de Momo – há renda extra, amor livre, os índices de violência diminuem. Um divã coletivo que dialoga com o nosso DNA e no qual processamos – armados de farra, não nos esqueçamos – as questões mais sensíveis para, ufa!, encararmos a dor e delícia de mais 360 rotações. 

Quer flerte maior com a própria visão, vá lá, ocidental de desenvolvimento? E um bem-estar social à brasileira, vejam só!, singularidade do torrão-manancial que insiste em dar de ombros para o seu eu-lírico e miscigenado. Eis, portanto, o grande desafio para quando a próxima eleição e a pandemia passarem: fazer com que os filhos da cultura de rua sejam de fatos reconhecidos na terra que tem cais do Valongo e palmeiras imperiais em convívio. Nossos coletivos batuqueiros não são meros fandangos, mas confidentes históricos do asfalto/morro, espelhos do tempo, papel carbono de sangue e suor. O Rio existe com seu jeitinho peculiar também porque o carnaval existe. Fuzarca-oxigênio mergulhada nos tapas, beijos e negociações que nos conduziram até aqui.

“(...) O Rio toma forma de sambista. É puro carnaval, loucura mansa, a reboar no canto de mil bocas, de dez mil, de trinta mil, de cem mil bocas, no ritual de entrega a um deus amigo, deus veloz que passa e deixa rastro de música no espaço para o resto do ano”. O poeta Drummond, rei da praia de Copacabana e das nossas emoções – sazonalmente alvejado por vândalos ali na orla – sempre teve razão. Estranho seria se o Rio não tirasse do armário a velha fantasia de todo Verão, nem decretasse em todas as direções que o seu melhor estado é o de carnaval. 

Em cada bar, esquina, beco e viela da metrópole-balneário encalorada, os baticuns são convidativos. Mais ainda: imperativos. Somos América austral menina, tupis, bantos, ibéricos, inigualáveis na experimentação de cantar para subir com as dores por intermédio da festa. Seiva, sangue e suor que escorrem de veias abertas, cacos, fractais, flores. E confetes, muitos confetes. Para brincar e até guardar nos bolsos da velha infância...

Enquanto nossos museus inda pegam fogo, que os fluidos subam e se espalhem, despertando do sono o menino adolescente que canta de galo por ser gigante pela própria natureza. Afinal, qual mistério tem a terra desigual que, pesares à parte, goza estrelas enquanto se entorpece de gente na dureza da vida? O carnaval é memória, alforria de corpos e pés de vento, a percussão concede a graça do encontro e da conexão ancestral.

Abram a porta, ouçam o barulho que vem de fora, sintam o poder incendiário da criação livre: deixem-nos tocar o nosso tamborim!



Fábio Fabato é jornalista e escritor. Pesquisador de cultura popular, comenta o carnaval do Rio há 15 anos em rádio, TV e portais especializados sobre a folia. Autor da primeira biografia da escola de samba Mocidade Independente, escreveu algumas sinopses de escolas de samba e também cinco livros, dentre eles, “Pra tudo começar na quinta-feira” (ao lado de Luiz Antonio Simas), obra de referência sobre o quesito enredo.


Share
Tweet
Pin
Share
No Comments

Durante o mês passado, na Série Padroeiros, o Carnavalize abordou a relação das escolas de samba com os santos e os orixás de casa. Como refletir as identidades religiosas das suas comunidades sem se relacionar com a maneira com a qual elas regem seus batuques para colocar o cortejo na Avenida? Para falar sobre isso, durante as quartas-feiras do mês de agosto, o Carnavalize vai se debruçar sobre as baterias cariocas com a Série Batuques.


Texto: Eryck Quirino e João Vitor Silveira
Revisão: Luise Campos 


Investigar esses ritmos é perceber as ligações de um universo quase à parte, no qual as conversas se dão por sinais e pela batuta aguda dos apitos, os quais se manifestam a todo momento ditando o andamento do som. Assim, os símbolos visuais e auditivos das direções de bateria chamam a atenção dos ritmistas e se misturam na complexa melodia da orquestra que conduz a escola em sua caminhada. É dela a missão de ser a primeira ala a começar o desfile e a última a encontrar a linha final.

Existe frases que permeiam diversos âmbitos da vida que, em certos casos, se aplicam com maestria ao mundo do samba. Uma delas é a que diz que “parecido não é igual”, que é um dos motes para as viagens que faremos no texto de hoje. Ao ouvido desatento, as levadas rítmicas das caixas que contam com rufada podem se misturar e, muitas vezes, soarem iguais, ainda mais com divisões rítmicas tão parecidas. É exatamente por isso que, para nós, é importante desvendar esses códigos e mostrar que as batidas não só têm diferenças no que diz respeito à sua execução, mas também com relação à forma como se relacionam com o resto da bateria em cada escola. 

Dessa forma, nossos primeiros passos nos levarão à Madureira, onde nossos caminhos irão se cruzar entre Portela e Império Serrano. Dialogando com as duas maiores escolas da região, iremos desvendar signos que se parecem, mas, ao mesmo tempo, se diferem. As caixas, quando conversam com os agogôs - como acontece na bateria dessas agremiações -, podem produzir sons e identidades semelhantes, mas, na verdade, elas têm características únicas. Ao se analisar com cuidado, elas não nos deixam confundir a Tabajara do Samba e a Sinfônica do Samba. Seguindo a ordem de idade, chegaremos ao final da nossa trajetória à União da Ilha, onde também temos signos parecidos, mas com identidade própria e única.


“Tabajara ê, Tabajara ô, a Tabajara do Samba chegou”


Como bons sambistas, respeitamos os mais velhos e, como manda o figurino, iremos prestar reverência à mais antiga das três escolas de samba do texto de hoje. Sendo assim, nossa primeira parada em Madureira será na Majestade do Samba, lar de nomes estelares da nossa folia, como Natal, Monarco, Clara Nunes, Paulo da Portela, Tia Surica, Candeia, Heitor dos Prazeres, Malandro Histórico, Zé Ketti e Paulinho da VIola. Esse verdadeiro celeiro de bambas se originou a partir de alguns blocos carnavalescos da região de Oswaldo Cruz e Madureira como Ouro sobre Azul, Quem Fala de Nós Come Mosca, Baianinhas de Oswaldo Cruz e o Conjunto de Oswaldo Cruz, este último que viria mais tarde a ser chamado de Vai Como Pode.

Sendo uma das mais tradicionais agremiações do Rio de Janeiro - inclusive a maior vencedora dos concursos de desfiles - a Portela viu de perto o início da formação das escolas de samba e a sua relação com o poder público, ela mesma passando por experiências de tentativa de controle mais direto por parte deste. Alguns dos seus fundadores relatam, coisa que não há como comprovar com exatidão nos dias de hoje (aquele papo recorrente sobre a história oral no mundo do samba), que o próprio nome da Portela é oriundo da ação de esferas governamentais para ordenar a folia. Segundo esses relatos, o delegado Dulcídio Gonçalves teria argumentado contra o nome Vai Como Pode, que, segundo ele, não seria adequado para denominar uma organização séria, tendo sugerido Portela como designação para a agremiação, inspirado na Estrada do Portela. 

Mas algo que sabemos de fato é que a tradição da Portela se estende por todos os braços da festa carnavalesca. Colecionando alguns dos maiores nomes da história da folia em seu rol de bambas, passando por compositores, cantores e dançarinos, também não seria diferente quando falamos de seus ritmistas e daqueles que carregam a responsabilidade de comandar a orquestra rítmica que embala os desfiles das escolas de samba. Já tendo contado com o lendário Mestre Marçal em suas fileiras, também teve no comando de sua bateria os mestres Bombeiro, Timbó, Mug da Portela, Paulinho Botelho, Carlinhos Catanha e Marçalzinho, filho de Mestre Marçal. 

A bela caixa da Tabajara do Samba no ano de 2018. Foto: Dhavid Normando/Riotur


Mestre Marçal ficou conhecido por elevar o patamar da bateria da Portela para uma outra prateleira. Foi o seu trabalho ao longo das décadas de 1970 e 1980 que tornou a bateria da Portela bem reconhecida dentro do Carnaval, empregando um estilo único, tendo como uma das características marcantes um diálogo intenso e rico entre as caixas e os surdos de terceira. Era bem sabido que essa conversa se relacionava com as batidas que ocorriam nas casas de candomblé, tendo os surdos de terceira da Portela uma relação próxima com os atabaques de corte. Muitos dizem que essa relação se estabeleceu pela presença na Tabajara do Samba de muitos ogans, aqueles que conduzem os batuques nos rituais religiosos, principalmente no naipe de surdo de terceira. 

Mas, por alguns anos, a bateria da Portela teve alguns percalços. Muitos deles foram causados por brigas internas causadas por uma troca de comando. Nilo Sérgio, atual mestre de bateria da Tabajara do Samba, conta em entrevista ao site Apoteose: ”Quando o Mestre Marçal saiu da bateria e o mestre Timbó assumiu, aconteceu uma ruptura muito grande. Muitos que eram “partidários” do Marçal diziam que não saíam com o Timbó, e quando o Timbó saiu, anos depois, alguns que eram “partidários” do Timbó, diziam que não sairiam com outro.” O próprio mestre Nilo conta que, por causa dessa rusga, espaços se abriram e foi por causa da leva de ritmistas que saíram com a entrada do Timbó que ele entrou na bateria, no naipe de agogô.

Mas essa divisão dentro da bateria da Portela não fez apenas com que espaços fossem abertos na Tabajara do Samba, mas também fez com que um dos naipes mais característicos da bateria, as caixas, começassem a apresentar problemas nos desfiles. Uma das razões disso era que os ritmistas que tocavam com Mestre Marçal tinham uma visão do toque, aqueles que tocavam com o Timbó tinham outra, o que resultou numa disputa após a saída de ambos. Alguns realizavam uma levada e outros executavam outra, de forma que o toque acabasse ficando “sujo”, tendo como consequência o desconto de pontos em algumas oportunidades. 

Mestre Nilo Sérgio, comandante da Tabajara do Samba desde 2006. Foto: Leandro Andrade/Divulgação

Quando o mestre Marçalzinho deixou a bateria da Portela, em 2005, devido a outros compromissos profissionais, o já diretor Nilo Sérgio foi alçado ao posto de mestre da bateria. Ele diz, na entrevista ao site Apoteose, não querer ser mestre na ocasião, mas que acabou assumindo o cargo para que não viesse um ritmista de fora da escola. Ao assumir a bateria, no ano de 2006, sua primeira preocupação foi reformular o naipe das caixas. Não só garantir que a levada estivesse sendo executada de maneira correta, mas também garantir que a Portela tivesse o melhor toque de caixa dentro de sua realidade, de forma que, nesse processo de reformulação, ocorreu uma mudança na forma de execução do instrumento. 

A levada das caixas da Portela contava com três rufadas dentro da sua divisão rítmica. Para além da confusão das individualidades dos toques dos ritmistas dentro do naipe, o próprio tipo de levada começava a prejudicar sua realização, pois, à época, o andamento das baterias das escolas de samba começou a se acelerar. Dessa forma, executar as três rufadas era uma tarefa quase impossível, muitas vezes embolando a bateria. Sendo assim, após estudar o toque e testar algumas variações, chegou-se na versão final com uma rufada, que é usada pela Tabajara do Samba até os dias de hoje. Mas a tarefa não foi fácil, e precisou de muita perseverança - e também certa dose de coragem - para levar as mudanças adiante, ainda que, eventualmente, fosse necessário cortar os ritmistas que não se comprometessem com o trabalho. 

Sob a batuta do mestre Nilo Sérgio, a Tabajara do Samba seguiu assumindo com cada vez mais gosto a marca que havia lhe sido característica ao longo dos anos. “Macumbeiro” com orgulho, como ele mesmo diz, Nilo Sérgio gosta de incorporar os ritmos de origem africana na bateria da Portela, sempre que o samba-enredo em questão abre essa possibilidade. Dessa forma, a introdução de ritmos como o ijexá e o 6 por 1 puderam ser ouvidos nas apresentações da agremiação ao longo dos anos de comando do mestre. Além disso, também houve diversas convenções com ritmos de origem africana utilizados para os esquentas da escola, sendo um dos mais notórios o que aconteceu no Setor 1 da Marquês de Sapucaí no ano de 2012, quando desfilou com o histórico enredo “E o Povo Na Rua Cantando é Feito uma Reza, um Ritual”. 



Sendo um dos mais longevos mestres da Sapucaí, Nilo Sérgio está no comando da Tabajara do Samba há 15 carnavais, estando atrás apenas do mestre Plínio da Beija-Flor com 24 carnavais seguidos no comando ininterrupto da mesma escola. E, como bem sabemos, o Carnaval não costuma ser gentil com os mestres de bateria - mudanças diante de resultados negativos não costumam ser raras. Para além de apresentar um resultado positivo em notas para a agremiação, o mestre Nilo fez um trabalho de resgate essencial para a bateria da Portela, colocando nos eixos algumas questões que haviam se perdido por motivos além do seu controle. Mas ele não se engana quanto à sua longevidade e, da mesma forma que foi auxiliado no passado pelos mestres “cascudos” da época, hoje, sendo um dos mais experientes, devolve a ajuda que recebeu para seus diretores e ritmistas, sendo um dos grandes mestres do nosso Carnaval.


“Tem poesia no ar, você já sabe quem sou… Pelo toque do agogô”


Se formos levar em consideração a geografia dos dias de hoje, nossa caminhada a partir do nosso destino prévio para o próximo endereço é bem curta. Menos de um quilômetro separam a atual sede da Portela, na Rua Clara Nunes, da quadra do Império Serrano, na Avenida Ministro Edgar Romero. Entretanto, ainda que essa distância seja curta para os pés, no coração ela se prolonga em cima de uma rivalidade histórica. A grande verdade é que Madureira não poderia ser mais feliz em abrigar duas escolas do porte da Portela e do Império Serrano e, talvez, festa maior não se tenha visto do que em 2017, quando o caneco de campeã do Carnaval se duplicou em Madureira, com a vitória da Portela no Grupo Especial e do Império no Grupo de Acesso. 

Fundado em 23 de março de 1947, vindo daí seu famoso apelido de “Menino de 47”, foi originada de uma dissidência da Prazer da Serrinha, na comunidade homônima. Não é exagero concordar com a letra do samba-enredo que a agremiação levou para a Avenida para conquistar seu título do ano de 2017. Quando os seus componentes cantam a plenos pulmões que a sua história fala por si, eles contam a verdade. O Reizinho de Madureira tem uma tradição fincada no coração do Carnaval carioca, sendo um dos pilares para a construção dessa trajetória momesca, de forma que é impossível falar dessa nossa festa popular sem fazer a eles a devida referência. 

Desde que foi fundada, a agremiação nunca parou de gerar bambas essenciais para a preservação da nossa arte: Tia Eulália, Molequinho, Mano Elói, Tia Maria, Mano Décio, Silas de Oliveira, Dona Ivone Lara e Wilson das Neves, entre tantos outros. Começando sua trajetória vencedora no primeiro desfile após sua fundação, no ano de 1948, a escola da Serrinha mostrava para todos e, principalmente, para os dois rivais mais próximos, que havia chegado não apenas para marcar presença, mas para disputar em pé de igualdade com as coirmãs mais velhas, sem dever nada a ninguém. E boa parte da fundamentação dessa tradição vencedora passa pela Sinfônica do Samba.

Mestre Gilmar no comando da bateria do Império Serrano no Carnaval de 2017. Foto: André Melo-Andrade

E, se a árvore do Império Serrano deu tantos frutos, não seria diferente com a Sinfônica do Samba. A bateria da Serrinha sempre esteve sob a batuta de mestres que são referência não só dentro da escola, mas para todo o mundo do Carnaval, como mestre Faísca, mestre Birão, mestre Wanderley, mestre Átila, mestre Sílvio Manoel, entre outros sábios que estiveram no comando desse tradicional quesito. Nessa seleta lista, também esteve o mestre Gilmar, que comandou a Sinfônica de 2010 até o último desfile da agremiação. Com a tradição desses mestres, a bateria do Império se fundamentou e se tornou inconfundível. E a base desse fundamento está na sua “cozinha”. 

A dita “cozinha” da bateria (composta por surdos, caixas e repiques) do Império Serrano tem uma afinação mais grave, como o mestre Gilmar diz: ”A cozinha do Império Serrano, historicamente, é mais grave. A bateria do Império é uma bateria pesada. A afinação dos surdos, sendo a primeira bem grave, a segunda médio-aguda e a terceira aguda contribui para isso. A gente usava bastante os surdos de segunda nas bossas, então a gente precisava dessa boa resposta e desse balanço.” E o balanço da bateria do Império mora bastante nas particularidades da escola em relação aos surdos. 

Os surdos de primeira do Império eram divididos em dois tipos: metade deles eram surdos de 26 polegadas e 55 centímetros de altura, sendo a outra metade surdos de 29 polegadas com também 55 centímetros de altura, dando um bom peso e o tom grave característico dessa bateria. As marcações de segunda eram de 24 polegadas e as terceiras eram de 18 polegadas, com algo entre 65 ou 70 centímetros de altura, conhecidas também como “charutinho”. Outra particularidade do Império Serrano é a diferenciação entre as terceiras e a formação dos surdos, como o mestre Gilmar explica:

”Dentre as terceiras do Império, geralmente 18, nós temos dez terceiras que vão fazer os desenhos definidos para o samba. Essas terceiras têm o revestimento de couro de um lado e o revestimento de nylon do outro, tendo um agudo mais alto. Já as oito terceiras restantes vão ser apenas de seguimento, fazendo só a sustentação rítmica, e essas vão ter o revestimento de couro dos dois lados, tendo um agudo um pouco mais baixo. Já na hora de formar a bateria, diferente das outras escolas que têm primeira e segunda intercaladas nas laterais e as terceiras espalhadas, nós temos as segundas nas laterais e, nos corredores do meio da bateria, nós intercalamos as primeiras e as terceiras de desenho, com as terceiras de seguimento vindo espalhadas ao longo da cozinha.” 


Quando chegamos ao naipe de caixas, uma das grandes estrelas da Sinfônica, também há muita história para contar. Apesar de ser uma característica tradicional, o característico toque rufado e acentuado do Império por um tempo se havia perdido em meio a floreios e influências pessoais na levada do instrumento. Durante a gestão do mestre Macarrão como Presidente da Bateria, começou um processo de padronização desse toque, que foi levado adiante pelo mestre Átila e pelo mestre Gilmar, com auxílio e opiniões dos grandes mestres Wilson das Neves, Faísca, Birão e Wanderley. O resultado foi executado em caixas de 12 e de 14 polegadas, sendo as de 12 com uma afinação um pouco mais alta. Ainda assim, a afinação das caixas do Império Serrano é a mais grave entre as baterias estudadas aqui. Em consonância, há também a levada de repique da agremiação, mais próxima da tradicional, mas com rufadas ocasionais, para ajudar na sustentação do ritmo das caixas. 

E é justamente a estrutura pesada da cozinha do Império Serrano que permite que os naipes leves da bateria possam brilhar. Mas, até mesmo para se chegar a isso, houve um trabalho de padronização e limpeza em todos eles: 

”Esse trabalho de padronização foi necessário. As cuícas a gente teve que padronizar, sair da questão muito individual. Ainda havia alguns momentos dos sambas em que a gente liberava os floreios, mas com muito cuidado. Os chocalhos também passaram por uma padronização, todo mundo entrando junto e pra frente, junto também com uma renovação nos instrumentos. E os tamborins também, que é algo que esteve quase em extinção. Naipe de tamborim é algo muito “flutuante”, o cara toca aqui, toca ali, e acaba perdendo a identidade da escola. Até a gente fazer um trabalho para unificar isso, demora.” 

Edgard do Agogô, criador de um dos instrumentos que mais caracteriza a bateria do Império.  Foto: Guilherme Pinto / Agência O Globo Newsletters

E não podíamos terminar sem falar do agogô. O instrumento que talvez seja a maior identificação para o público externo quando se pensa em Império - é quase impossível ouvi-lo e não associá-lo ao Reizinho de Madureira - quase marcou história na escola vizinha. O grande Edgard do Agogô levou primeiramente o instrumento para a Portela, mas num desentendimento com o então presidente Natal, que não aceitou a inovação, resolveu apresentá-lo a alguns amigos do Império, que o incorporaram na bateria. Isso criou uma marca para bateria e o agogô foi, inclusive, o primeiro instrumento do mestre Gilmar. É ele quem faz questão de exaltar aqueles que ajudaram a construir sua caminhada: “Me sinto muito afortunado de ter tido a oportunidade de trabalhar com tantos feras. Wilson das Neves, nosso pai maior, Átila, Macarrão, Faísca, Birão, Wanderley, Sílvio Manoel. Ter contado com eles não só na minha trajetória até virar mestre, mas também enquanto mestre, foi essencial.”


Vem ver, vem ver! A “Baterilha” arrepiar!


Findadas as nossas andanças pelo bairro de Madureira, nossa viagem toma rumo para um local que a linha do trem não alcança, mas, ainda assim, se costura na imensa colcha de retalhos que é o mundo do samba. Colcha essa constituída por um pedaço de tradição de um lado, um outro corte de tradição de outro, dando origem à cultura que rege nossas vidas. E, se falarmos de identidade, talvez a União da Ilha seja uma daquelas escolas que tem uma tão marcada ao longo de sua história que é se torna tarefa fácil traçar como a agremiação gosta de se comunicar não só com seus componentes, mas com todo o público dos desfiles. 

A escola, fundada em 7 de março de 1953, tomou emprestado o nome e as cores do União Futebol Clube, time de futebol da área da Ilha do Governador do qual os fundadores da escola faziam parte à época. Alguns anos mais tarde, em 1960, ao ganhar a aprovação para participar dos desfiles do Rio de Janeiro, teve seu nome modificado para o atual: GRES União da Ilha do Governador. A escola marcou sua identidade ao levar para a Avenida desfiles memoráveis de tom irreverente, festejando a essência de brincar o Carnaval com leveza e alegria. Nessa trajetória, nos brindou com sambas que ficaram eternamente marcados na história cultural do Rio de Janeiro, chegando a transpor as barreiras do Carnaval, como Domingo (1977), O Amanhã (1978), É Hoje (1982) e Festa Profana (1989).

O intérprete Ito Melodia, um dos maiores cantores da história do Carnaval e herdeiro do legado de Aroldo Melodia. Foto: Gabriel Nascimento / Riotur

Também está marcada na história do Carnaval uma das maiores dinastias vocais da folia carioca. Sendo quase unânime a sua presença no rol dos maiores intérpretes da história dos desfiles, Aroldo Melodia deixou sua marca incrível na União da Ilha, com sua voz marcante e quase inconfundível. O “quase” aqui fica por conta do fato de que, às vezes, temos a impressão de que é sua voz que ouvindo nas atuações do seu incrível filho, Ito Melodia, que carrega o legado familiar conduzindo o carro de som da Ilha ininterruptamente desde 2002, ainda tendo defendido a agremiação em outros dois anos. Mas a tradição familiar não parece conduzir apenas os caminhos dos microfones de canto da azul, vermelha e branca da Ilha do Governador. Essa história se estende também para o caminho dos batuques. 

Sendo hoje um dos mestres de bateria da União da Ilha, Marcelo Santos sabe desde cedo - muito cedo - o que significa ter no sangue o ritmo da Baterilha. Ele é filho de Odete, ritmista de chocalho da bateria, com o lendário mestre Tinico. Marcelo e seu irmão gêmeo Maurício sabem desde a barriga da mãe o que é estar em constante contato com o ritmo. Entretanto, ainda que veja o lado positivo de ter essa herança familiar na bateria, ele não esconde que também é uma responsabilidade: “A gente tem que prezar pelo nome que veio antes. Desde que me tornei diretor, algumas vezes quando a bateria da Ilha não andava muito bem, eu escutava na rua: ‘Na época do teu pai era melhor hein? Teu pai merece coisa melhor!’ Então, ter esse legado é muito positivo, mas é também uma responsabilidade”. 

Porém, a Ilha não abraça somente aqueles que já têm o ritmo da Baterilha correndo na veia desde a infância. Keko Araújo tem uma trajetória diferente, mas de muito sucesso, premiada em 2019 ao ser alçado ao posto de mestre de bateria junto com Marcelo. Oriundo da escolinha de bateria da escola da Ilha do Governador, Keko trilhou todos os passos possíveis: aluno da escolinha, professor dela, ritmista da bateria, diretor da bateria e, hoje, mestre. E esse itinerário traçado é motivo de orgulho: “Poder percorrer todo esse caminho é muito gratificante. Fui repique do mestre Paulão e sinto que chegar a esse posto foi merecido. Posso dizer que percorri um grande caminho até conquistar essa faixa preta. E hoje eu tenho segurança de fazer o meu trabalho.” 

Os mestres Keko Araújo e Marcelo Santos, respectivamente, à frente da bateria desde 2018. Foto: Fábio Felder

E, por falar em repique, a forma de tocar esse instrumento é uma das grandes características da bateria da União da Ilha. Historicamente, a Baterilha sempre foi conhecida como uma grande potência no naipe. Há muito tempo atrás, houve um concurso de repique realizado no Copacabana Palace, tendo acontecido duas edições: uma vencida por Carlinho Coca e uma por mestre Tinico, da União da Ilha. Mas não para por aí. Alguns mestres da União da Ilha, inclusive, são reconhecidos como exímios tocadores do instrumento, plantando essa semente em seu trabalho. São exemplos disso mestre Odilon e mestre Riquinho, além de exímios repiques de bossa como Jagunço, Carioca, Bigode, Luquinhas, assim como os próprios mestres Keko e Marcelo. 

Outro grande trunfo da bateria da União da Ilha é o naipe de caixas. Já tendo passado por algumas transformações ao longo dos anos, ele passou por uma reformulação recente para reencontrar a batida de caixa rufada introduzida pelo lendário mestre Paulão. Mas essa fortaleza foi se perdendo, como conta o mestre Marcelo:

“A bateria passou muito tempo sem ter uma renovação, que é sempre saudável para a bateria. Muitos foram ficando velhos, alguns saíram do Carnaval, outros pararam, alguns faleceram, e essa batida se perdeu. Para poder suprir essa questão, os mestres foram convidando ritmistas pra fazer a batida de caixa em cima, o partido alto, até que em 2014 o Mestre Thiago Diogo implementou todas as caixas sendo tocada em cima.”

Essa mudança permaneceu com o Ciça em 2015. Porém, os ritmistas mais antigos e os diretores da escola para o ano de 2016 fizeram um pedido para o mestre: que fosse resgatada a batida rufada da bateria da Ilha. A solicitação foi atendida, de forma que esse resgate começou para o Carnaval de 2016. Em meio a essa mudança, também foi implementada outra mudança, que fez com que todas as caixas tocadas embaixo fossem de 14 polegadas. Isso alegrou muitos ritmistas e gerou frutos para a escolinha, já que, segundo Marcelo, agora são formados ritmistas versados no toque tradicional da escola. Ele também exalta mestre Ciça pela escolha: “O Ciça fez o nome dele e ganhou tudo com as caixas em cima, no partido alto. Ele saiu da zona de conforto dele pra poder fazer esse resgate e implementar novamente essa batida característica da Ilha. E nós ficamos muito felizes com isso.” 



E a admiração ao mestre Ciça não para por aí. A influência de um dos maiores mestres do Carnaval carioca com certeza foi importante para que Marcelo e Keko ao realizar o trabalho que fazem na Ilha do Governador. Inclusive, sob a batuta de Ciça, Keko começou a se debruçar mais sobre a questão da afinação da bateria, estudando bastante o assunto. Mas, tendo trabalhado com tantos mestres que inspiram todo o mundo do Carnaval, ele presta reverência a todos eles: “Eu procuro pegar um pouquinho de cada um pra construir um trabalho forte meu. Trabalhei com muito mestre bom, então tento tirar um pouco de cada. mestre Paulão, mestre Riquinho, mestre Bira, mestre Odilon, mestre Ciça, o próprio Thiago Diogo. Aprendi com todos eles.” 

Por fim, é também uma das principais características da bateria da União da Ilha seu forte naipe de tamborins. Na década de 1980 e 1990, a Baterilha era conhecida por ter uma ala de tamborins muito comentada pelo mundo do Carnaval, contando com ritmistas famosos nesse meio. Mestre Marcelo cita alguns nomes: “Vânia, Betão, Ivan, Papaco, Zélio. Essa galera comandava a ala, não tinha um diretor de fato, mas eles eram conhecidos por todos. Então eles se resolviam e faziam uma ala completa, com um carreteiro muito limpo. Hoje em dia, nós também voltamos a ter uma ala muito forte de tamborim, com o trabalho do nosso atual diretor Yan, que tem sido muito comentado como um dos melhores do Carnaval. Ele está fazendo um trabalho muito bom.”

Com o fim deste terceiro capítulo da nossa Série Batuques, nos aproximamos do nosso desfecho na semana que vem. Se ainda não leu, confira o texto sobre o Partido Alto (Estácio, Tijuca, Salgueiro e Vila Isabel) e a batida do surdo um da Estação Primeira de Mangueira. Para o último capítulo, iremos falar das características do baticumbum independente da Não Existe Mais Quente.

Além da Série #Batuques, você confere também toda segunda-feira a #SérieMulheres durante o mês de agosto. 

Share
Tweet
Pin
Share
No Comments
Mais Recente
Mais Antigo

Visite SAL60!

Visite SAL60!

Sobre nós

About Me

Somos um projeto multiplataforma que busca valorizar o carnaval e as escolas de samba resgatando sua história e seus grandes personagens. Atuamos não só na internet e nas redes sociais, mas na produção de eventos, exposições e produtos que valorizem nosso maior evento artístico-cultural.

Siga a gente

  • twitter
  • facebook
  • instagram

Desfile das Campeãs

  • Samba de Gala: a festa das melhores escolas paulistanas de 2017
    A última sexta-feira foi de celebração para as cinco primeiras do Grupo Especial e as duas promovidas do Grupo de Acesso, que apresentar...
  • #BOLOEGUARANÁ: Pioneira no protagonismo feminino no carnaval, Unidos da Ponte completa 68 anos
      Texto: Bernardo Pilotto Hoje é dia de festa em São Mateus, bairro de São João de Meriti, município da Baixada Fluminense vizinho ao Rio de...
  • #Colablize: 24 de novembro - dia de festa, coroação e reflexão!
      Texto: Nobres Casais  Muitos se arrepiam ao ouvir uma bateria tocar. Um surdo, bem marcado, pode até fazer o coração pulsar. Alegorias ilu...
  • Carnavalizadores de Primeira: Mestre André, o mestre dos mestres - A genialidade do maestro do povo
      Texto: Eryck Quirino e João Vitor Silveira Revisão: Felipe Tinoco Em homenagem aos 40 anos do falecimento de Mestre André, lendário comand...
  • #SÉRIEDECADA: os 10 desfiles mais marcantes da Série A do carnaval carioca
    por Beatriz Freire e Leonardo Antan Revisão: Felipe Tinoco Artes e visual: Vitor Melo O Carnavalize está de volta a pleno vapor! ...
  • #GiroAncestral: uma introdução aos elementos básicos da arte de mestre-sala e porta-bandeira
    Texto:  Juliana Yamamoto e Beatriz Freire Edição e revisão: Felipe Tinoco e Leonardo Antan Arte: Vítor Melo É com muita alegri...

Total de Carnavalizadas

Colunas/Séries

sinopse BOLOEGUARANÁ 7x1 carnavalize Carnavalizadores de Primeira Quase Uma Repórter 5x série década artistas da folia colablize giro ancestral SérieDécada quilombo do samba Carnavápolis do setor 1 a apoteose série carnavalescos série enredos processos da criação dossiê carnavalize Na Tela da TV série casais 10 vezes Série Batuques Série Mulheres Série Padroeiros efemérides minha identidade série baluartes série sambas

Carnavalizações antigas

  • ►  2023 (28)
    • ►  fev. (28)
  • ►  2022 (41)
    • ►  dez. (1)
    • ►  jul. (1)
    • ►  jun. (5)
    • ►  mai. (1)
    • ►  abr. (30)
    • ►  fev. (2)
    • ►  jan. (1)
  • ►  2021 (10)
    • ►  set. (4)
    • ►  jun. (1)
    • ►  mai. (1)
    • ►  mar. (2)
    • ►  fev. (2)
  • ▼  2020 (172)
    • ►  dez. (8)
    • ►  nov. (17)
    • ►  out. (15)
    • ►  set. (13)
    • ▼  ago. (19)
      • #Quilombo: Corpos que dançam, corpos que falam – r...
      • #Panorâmica: o ofício erudito-popular e cheio de b...
      • #SérieBatuques: Meu baticumbum é diferente: não, n...
      • #SérieMulheres: Heroínas do barracão: a atuação fe...
      • #Colablize: Para quando a eleição e a pandemia pas...
      • #SérieBatuques: Que rufem os tambores! O baticum m...
      • #SérieMulheres: Rainhas do canto e da dança: a atu...
      • Carnavalizadores de Primeira: Antônio Candeia Filh...
      • #Quilombo: Batuque – a musicalidade das escolas de...
      • SINOPSE | Lins Imperial 2021: Mussum pra sempris –...
      • #SérieBatuques: Todo mundo te conhece ao longe!
      • #SérieMulheres Líderes e fundadoras: entre o brilh...
      • #ColabLize: Repensando a relação entre Administraç...
      • Carnavalizadores de Primeira: Adoniran Barbosa - 1...
      • #SérieBatuques: Do Estácio à Grande Tijuca, as bat...
      • #ColabLize: Hora de vestir a fantasia de barata pa...
      • #SérieMulheres Em seio feminino o samba nasceu: as...
      • #BOLOEGUARANÁ: dona de sambas premiados nos último...
      • #Quilombo: a pretagogia das escolas de samba: proc...
    • ►  jul. (16)
    • ►  jun. (15)
    • ►  mai. (10)
    • ►  abr. (11)
    • ►  mar. (10)
    • ►  fev. (33)
    • ►  jan. (5)
  • ►  2019 (74)
    • ►  dez. (2)
    • ►  nov. (5)
    • ►  ago. (4)
    • ►  jul. (4)
    • ►  jun. (4)
    • ►  mai. (4)
    • ►  abr. (2)
    • ►  mar. (35)
    • ►  fev. (2)
    • ►  jan. (12)
  • ►  2018 (119)
    • ►  dez. (1)
    • ►  out. (6)
    • ►  set. (1)
    • ►  ago. (3)
    • ►  jul. (5)
    • ►  jun. (20)
    • ►  mai. (12)
    • ►  abr. (5)
    • ►  mar. (3)
    • ►  fev. (42)
    • ►  jan. (21)
  • ►  2017 (153)
    • ►  dez. (28)
    • ►  nov. (7)
    • ►  out. (8)
    • ►  ago. (5)
    • ►  jul. (12)
    • ►  jun. (7)
    • ►  mai. (10)
    • ►  abr. (7)
    • ►  mar. (7)
    • ►  fev. (49)
    • ►  jan. (13)
  • ►  2016 (83)
    • ►  dez. (10)
    • ►  out. (3)
    • ►  set. (9)
    • ►  ago. (22)
    • ►  jul. (39)

Created with by ThemeXpose